quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

12 canções

01
LOVE WILL TEAR US APART
by Joy Division




2009

Assim que ela disse aquilo nenhum de nós queria acreditar. A Jinx já estava na banda há cerca de dois anos e há cerca de dois anos que as coisas não podiam estar melhores. E há cerca de dois anos que eu estava, finalmente, apaixonado.
Quando os outros, por fim, nos deixaram a sós, a mim e à Jinx, peguei-lhe nas mãos e encostei-as ao meu coração. Ela olhou profundamente para mim e sorriu. E, nesse momento, quis dizer-lhe tudo aquilo que nunca tive coragem de lhe dizer.
Ela, apercebendo-se da aflição do meu olhar, afastou-se e murmurou:
— Nós nunca nos amámos verdadeiramente, pois não, Flash?
Flash. Em dois anos esta era a quinta vez, prá aí, que ela me tratava por Flash. E nas raras vezes que ela me tratara por Flash era sempre para reafirmar assuntos muito sérios que não tinham qualquer volta a dar. E este era mais um deles.
Aproximei-me dela sem saber o que lhe dizer. É claro que eu a tinha amado verdadeiramente. E era claro que ainda a amava. Mas, para Jinx, o amor era algo terrivelmente sério. Havia que vivê-lo intensamente, sem paragens, e ela sentia-se sem forças para o fazer. Agora, passado um ano, compreendi-a perfeitamente. Jinx tinha partido para nunca mais voltar. Tinha abandonado o grupo e tinha-se abandonado a ela própria a um destino de encarceramento. Não a perdoei na altura. Mas agora, de regresso a esta cidade que nos viu crescer, não consigo é perdoar-me a mim próprio.
Jinx não tinha fugido de nós. Ela simplesmente tinha fugido da nossa piedade, da nossa incompreensão para com a sua doença. E não teríamos mesmo. Depois não quisemos continuar. Não fazia sentido continuar o projecto sem aquele personagem que tanta falta nos fazia. E assim como aconteceu com os Joy Division, após a morte de Ian Curtis, também nós perdemos essa identidade e ganhámos uma nova ordem.   


02
HEY BOY, HEY GIRL
by Chemical Brothers




2007

Àquela hora da noite, as coisas ainda estavam calmas. Caía uma pequena neblina ligeiramente fria por sobre as nossas cabeças. Olhei para Rafael que fumava um cigarro e tinha o olhar preso numa miúda de cabelos pretos e compridos e que estava encostada a uma parte da porta do Frágil.
Rafael olhou para mim e segredou:
— Uma miúda daquelas é que eu gostava de ter na nossa banda. 
Olhei de nova para a miúda. Tinha uma pele muito branca. Os olhos eram verde água e tinha um piercing a sair-lhe da boca.
— Pois… — murmurei.
— Pois, o quê, pá?
— O que tu queres é uma gaja para te fazer uns broches nos intervalos dos ensaios, pá.
— Não sejas parvo, Flash.
— Pois… e ainda por cima com um piercing daqueles, não é? Até dava um ganda jeitão, não era?
Mas Rafael já não me estava a ouvir, pois dirigia-se apressadamente para a miúda dos cabelos pretos. E então percebi aquela atitude desesperada do meu amigo, pois que eu mesmo também não tinha uma gaja para me fazer uns broches nos intervalos dos ensaios.
E então pensei em coisas que não devia ter pensado. Parvoíces que não me levariam a lado nenhum. Mas a verdade é que Rafael estava certo numa coisa: precisávamos mesmo de alguém que desse voz à nossa banda, e uma miúda até que poderia ser giro. Agora tinha dúvidas era se aquela miúda era mesmo quem precisávamos.
Quando cheguei ao pé deles já Rafael estava a entabular uma conversa qualquer sobre uns gajos que tinham criado uma banda e precisavam de uma miúda para lhe dar voz. Não percebi se era de nós que falava, mas também isso teve pouca importância, porque logo a seguir o meu espírito foi alucinantemente atordoado quando a porta do Frágil se abriu e deixou passar, não só o pulsar estereofónico que se fazia sentir lá dentro, como aquela que depois viria a ser a miúda da minha vida. Isto soa piroso, eu sei, mas foi assim mesmo que as coisas aconteceram.


ROADS
by Portishead
           



2007

A Jinx não era loira nem morena. Os pais eram de Cabo Verde, mas o tom chocolate da sua pele vinha de uma avó brasileira que à muito deixara de existir.
— O que fazias no Frágil? — Perguntei-lhe ao fim de um bocado.
Estávamos no bar Cena de Copos e íamos já no nosso terceiro shot de B-52’s e eu sentia-me verdadeiramente excitado por estar ali, ao pé dela, sentindo-lhe o calor dos lábios na minha orelha cada vez que ela queria dizer alguma coisa.
— Estava à procura do meu namorado.
— Não!? — E não queria mesmo acreditar.
— Bem… — Corrigiu ela, — é mais… ex-namorado.
Depois fomos para casa do Rafael. Ele e a miúda dos cabelos pretos compridos, que, afinal, se chamava Rute, foram para o quarto. Eu e a Jinx ficámos na sala, atentos a um disco dos Goldfrapp, que rodava no gira-discos.
Depois aproximei-me mais dela e perguntei-lhe sem sequer me importar com o que os outros elementos da banda iriam pensar:
— Gostavas de cantar na nossa banda?
Ela sorriu, encostou depois os seus lábios ao meu ouvido e murmurou aquilo que verdadeiramente eu queria que ela dissesse mas tinha receio de me ouvir dizer:
— O que tu queres mesmo é foder comigo — e afastou-se.
A Jinx era assim. E mais tarde viria a ter mais provas desta sua necessidade de provocar os outros. Na altura não o sabia e, como tal, não soube o que dizer nem o que pensar.
Só o facto de saber que ela conseguia ler os meus pensamentos acerca dela, dava-me medo. Depois daquela noite, em que acabou e nem sequer dormimos juntos, não sabia se seguiríamos o mesmo caminho ou não. Mas a verdade é que ela acabou por se entregar de corpo e alma ao nosso projecto.


04    
LOSER
by Beck




2009

Antes de seguir para a casa do Rafael, que já não me lembrava muito bem onde ficava, fui parar ao British Bar no Cais do Sodré. Pedi uma Leffe fresquinha que o calor àquela hora apertava e muito e fiquei a saborear algumas historias ali vividas com a malta.
Vi o Leboni, com o seu cabelo escorrido e a pingar óleo a fumar aquelas suas cigarrilhas horrorosas a que ele tão energicamente defendia como o elixir da mente. Era parvo é o que era. Ao lado dele, estava o Jerónimo, em silêncio, abanando a cabeça em consentimento e numa frieza sem igual. Depois estava o Rafael, sempre inquieto, com as mãos numa batucada imprevisível, como se fossem o prolongamento de uma bateria. E era a Jinx olhando-me furtivamente cada vez que eu desviava os olhos dela, procurando para lá do bulício da rua inspiração para novas canções que, desconfortavelmente, tardavam a chegar. E ainda havia o Blacky, um preto tão escuro como o carvão, que mexia fantasticamente nos teclados e neles criava melodias arrepiantemente deliciosas, a bebericar a sua singela Super Bock já morta.
Quando sai para a rua tinha tomado uma decisão. Não iria, por muito que o exigissem, fazer nenhum discurso no enterro da Jinx. Eu tinha em memória as suas últimas palavras e era com elas que queria eternamente ficar. Decidi ligar ao Rafael e encontrar-me com ele algures no Chiado. Era melhor. À quase um ano que não punha os pés em Lisboa e o meu sentido de orientação estava um pouco… desorientado.
Foi com grande euforia que o vi chegar. Eu estava sentado num banco no Largo do Camões, acompanhado de um gajo espanhol que insistia, amigavelmente, trocar umas palavras comigo sobre politica. Ignorei-o, levantei-me e aproximei-me de Rafael. Trocámos um abraço de inegável amizade. Rafael era, sem dúvida, o meu grande amigo. Foi com ele que tudo aconteceu. Devíamos muito um ao outro.
Depois apareceu a Jinx. A coisa descontrolou-se um pouco para o meu lado. E quando soube que ela ia fazer aquilo por causa da doença fiquei destroçado e a viver subjugado a um inferno do qual não queria sair. E uma vez mais, o Rafael estava ali, segurando-me os braços para eu não cair em tentação.


05
THE PERFECT DRUG
by Nine Inch Nails




2008

Quando acordei senti uma necessidade enorme de lhe dizer que a amava. Mas o remorso tem destas coisas. A aflição de não ser natural incriminava-me. Levantei-me com a cabeça a latejar de cerveja e um cheiro estranho entranhado no corpo. E então vi: além de mim havia mais alguém na cama e não era a Jinx com toda a certeza. Havia uns fiapos de cabelos loiros a despontarem do lençol.
Aproximei-me e puxei o lençol para baixo. Para minha consolação ela não era feia, de todo. Tinha uns seios pequenos mas perfeitamente redondos e rijos, o ventre liso e uma púbis recortada num perfeito triângulo. Lembrei-me então da noite anterior: o Bairro Alto, a malta toda, incluindo a Rute e mais uns quantos amigos dela, a rodada imparável de copos depois do jantar no Agito, a Jinx a despedir-se alegando uma dor de cabeça terrível, e depois, mais tarde, aquela loira de olhos grandes, sozinha, abandonada ao balcão num decrépito bar qualquer que fomos a seguir, olhando-me e eu olhando-a, num jogo perigoso do cão e do gato. E depois aquilo.
E foi a partir desse momento que as coisas entre mim e a Jinx começaram a descontrolar. A campainha tocou e todo eu tremi. Eu sabia que a Jinx era a minha droga, e sabia também que ela nunca compreenderia se visse ali aquela mulher, um ser que nos era desconhecido, como se não existisse sequer, mas que apesar de tudo era fundamental para definir o nosso destino.
Quando me preparava para arranjar uma desculpa aceitável — se é que houvesse alguma — a porta da entrada abriu-se e a Jinx apareceu à porta do quarto com uma expressão incrédula estampada no rosto. Trazia uns calções super curtos a mostrar as bochechas do rabo e uma t-shirt tão pequena que se lhe via os seios a despontarem vontades impossíveis de ignorar.
A única coisa que ela murmurou antes de sair e bater a porta foi um “Flash…” arrastado, como se lançasse um suspiro de desalento. Ainda corri atrás dela, mas quando cheguei à rua e vi-me completamente sem roupas e os olhares vizinhos caindo em cima de mim como facas, não pude continuar.
“Flash…”, aquele nome ainda a reverberar na minha cabeça, quando a loira acordou. Era sempre assim que ela me tratava quando queria reafirmar um assunto muito sério e que não tinha qualquer volta a dar.


06
YOUNG FOLKS
by Peter Bjorn and John




2009

A expressão de Jinx transparecia uma serenidade quase ancestral, como se aquela pessoa tivesse vivido o suficiente para saber tudo sobre a vida. Baixei-me e beijei-lhe suavemente os lábios. Estavam frios. Queria dizer qualquer coisa, deveria mesmo, mas o quê? Pedir perdão?
Antes de me sentar e aguardar em silêncio os meus pecados, dirigi umas palavras de apreço a Rute, que apesar de amar o meu amigo Rafael, amava Jinx incondicionalmente. E literalmente. Rute já não tinha um piercing a sair-lhe da boca, mas sim dois, e mais uns quantos a decorarem- -lhe a cara toda. Foi difícil escolher um sítio para a beijar.
Éramos os únicos ali, em silêncio, a velar o corpo da nossa amiga. Só mais tarde, quando a noite principiava a despontar, é que apareceram o Leboni, o Jerónimo, o Blacky e os pais da Jinx. Vinham todos vestidos de negro e traziam uma expressão carregada de emoções.
Trocámos abraços e lágrimas e ficámos durante um bocado a remoer os silêncios do passado. Não nos víamos apenas há um ano e parecia que toda a gente tinha envelhecido prematuramente. Só o Rafael parecia manter um ar são, com o seu cabelo ruivo, da cor do fogo e quase sem rugas na cara.
Depois saímos à rua para desentorpecer as pernas e fumar um cigarro. Apenas os pais da Jinx ficaram recolhidos dentro da igreja amparados pelas lágrimas de Rute.
— Estão muito abatidos, os pais dela — disse eu, só para dizer qualquer coisa.
— É — murmurou o Jerónimo, que era de poucas palavras.
— E a tua vida com a Rute, Rafael — quis eu saber, — como vai?
— A Rute está despedaçada — disse ele, sem ressentimento, — mas vai tudo bem.
Olhei o resto da malta e naquele momento só desejei que o tempo voltasse para trás, que os Sexy Boys voltassem às profundezas da sua essência e fosse apenas uma banda de alguns gajos que faziam música instrumental porque simplesmente adoravam e não houvesse miúdas a complicar-nos a vida e a quererem mudar-nos o nome.
— E o que achaste da Jinx? — Perguntou-me o Rafael.
— Está linda — respondi.


07
KARMA KOMA
by Massive Attack




2007

Rafael e eu e o resto da banda olhávamos estarrecidos para Jinx. Ela, de olhos fechados, crispava as mãos em volta do microfone, enquanto os seus lábios faziam movimentos que pareciam libidinosos para quem estava do lado de fora, a assistir. Mas o que Jinx estava a fazer era a cantar.
Olhei para Rafael e o que pensámos a seguir foi que a nossa demanda tinha chegado ao fim. Ela era perfeita. Não só cantava bem, pelo menos, era o que todos nós achávamos, como tinha uma forma felina muito própria a segurar o microfone. E isso agradava-nos.
A partir desse dia todos nós sentimos que talvez poderíamos ir mais além. A Jinx foi incansável nos dias seguintes. Era das primeiras a chegar aos ensaios, sempre com uma alegria estampada no rosto, os olhos muito brilhantes quando cruzava os meus. Várias vezes acabávamos a noite a tomar uns copos ali para os lados de Santos e outras vezes acabávamos na minha cama, eu e a Jinx, saboreando o corpo um do outro.
Mas nem sempre era assim. Ou era eu que ficava super aborrecido com alguma coisa que acontecia de desagradável no ensaio e refugiava-me insolentemente num silêncio impenetrável; ou, por vezes, saia com outras pessoas a quem a Jinx não admirava nada e ficava dias e dias amuada comigo. Houve uma altura em que ela foi viver lá para a minha casa. Pensámos que se calhar era o que estávamos a precisar. Mas estávamos errados. Eu, pelo menos, estava. Tínhamos discussões repetidamente. Era insano viver assim.
A verdade é que desejávamo-nos acerrimamente, mas os meus desejos eram incontroláveis. Eu buscava outras mulheres, outros corpos com cheiros diferentes, enquanto Jinx apenas me queria inteiramente para ela. Ainda propus que ela saísse sozinha com outras pessoas, que tivesse sexo com outros homens, não me importava, o que eu queria era um pouco de espaço, mas na verdade, era ela que pouco a pouco se asfixiava na doença.
Nessas alturas eu queria era pensar que a culpa não era minha, mas quando a Jinx me encontrava com outras mulheres já nem “Flash…” pronunciava, era mais um desprezo silencioso aquilo que ela sentia por mim.


08
VIOLENTLY HAPPY
by Björk




2008

Era de madrugada e o comboio para o norte partia dali a quinze minutos. Primeiro tinha sido a Jinx quem se havia despedido de todos nós, beijando- -nos a todos sem qualquer ressentimento. Agora era eu. A Jinx tinha ido para o Alentejo, algures entre Serpa e Mértola, apascentar rebanhos como ela gostava de dizer. E eu também agora ia fugir.
Rafael deu-me um abraço longo e vigoroso como só aos amigos se dá. Depois despedi-me do Leboni, do Jerónimo e do Blacky. Não queria acreditar que tudo aquilo que havíamos imaginado para nós tinha terminado. Era um final inglório. Contudo eu não queria pensar assim. Levava na memória as nossas canções e com elas queria ficar eternamente agarrado. E Jinx, onde estaria ela?
E por estranho que possa parecer, à medida que o comboio se afastava de Santa Apolónia, o meu coração ia ficando cada vez mais calmo, cada vez mais descansado. A minha respiração passou a ser mais tranquila, como se o facto de estar a fugir daquilo tudo fosse realmente o que sempre deveria ter feito. Assustei-me por estar a pensar naquilo, porque na verdade, eu não os queria abandonar, queria simplesmente afastar-me, afastar-me de todas aquelas recordações por mais que isso me doesse.
Mas não era isso o que estava a acontecer. Eu estava a tentar esquecer e isso dava-me uma tranquilidade inimaginável. Fechei os olhos e, por momentos, vi-me de novo na noite em que o Rafael cumpria o seu quadragésimo primeiro aniversário. Nessa mesma noite tínhamos dado o nosso primeiro e único concerto. Tinha sido num clube recreativo de um bairro qualquer onde o Jerónimo era sócio e dava aulas Yoga duas vezes por semana.
Além de nós, estavam lá mais meia dúzia de gatos-pingados conhecidos do Jerónimo. E apesar de todo o nosso esforço em mantermos aquela pequeníssima turba unida, foi a Jinx quem sobressaiu naquele palco improvisado de madeira e poeira. E foi nessa mesma noite, quando bebíamos copos atrás de copos nas Primas no Bairro Alto e festejávamos loucamente o aniversário do Rafael, que a Jinx, uma vez mais me surpreendeu ao cair no chão a espumar da boca e a tremer por todos os lados.


09
YOU MAKE IT EASY
by Air




2008

Passado algum tempo os ataques da Jinx começaram a piorar. Eram mais frequentes e mais demorados. Estávamos todos aterrorizados. A Jinx começou a experimentar doses brutais de medicamentos recomendados pelos médicos para ver se conseguiam atenuar o seu estado. E todos os dias eram uma agonia porque nunca sabíamos quando é que ela iria ter um novo ataque. Passei a insistir com ela de que deveríamos estar mais tempo juntos, mas ela já tinha tomado uma atitude irreversível para comigo.
O tempo foi passando e a medicamentação parecia não fazer qualquer efeito. Os ataques repetiam-se e a Jinx começou a refugiar-se num mundo ao qual nenhum de nós conseguia compreender. Cinco meses depois Jinx reuniu-se connosco. Estava abatida, tinha a pele macilenta e as íris dos olhos pareciam dois fantasmas na sua cara.
— Vou-me embora — disse.
— Vais-te embora? Como assim? Não podes ir embora — Ripostei eu. — Não agora.
Ela abraçou-me com toda a sua força. Senti as suas lágrimas no meu pescoço. Ergui-lhe a cabeça e beijei-a demoradamente na boca pois sabia que aquele seria o nosso último momento juntos. Tudo tinha passado tão depressa. Num momento ela estava ali e no momento seguinte já se desprendia de toda a gente. E foi então que compreendi que a amava profundamente.
O resto do dia foi passado ao lado dela. Levei-a num carro que pedi emprestado ao Leboni até a casa de uma prima que ela tinha lá para os lados do Alentejo, numa terra perdida entre algumas oliveiras e ervas daninhas a alastrarem também elas como uma doença.
Fomos passear por um campo onde os amores-perfeitos cresciam aleatoriamente no meio das urtigas e onde o vento soprava baixinho como se estivesse a murmurar uma canção só para nós. O campo era uma imensidão assustadoramente desolada de terra, mas quando olhei para Jinx, pareceu-me vê-la mais contente do que alguma vez a vira.


10
THE TRICK IS TO KEEP BREATHING
by Garbage




2009

Os momentos passados no cemitério do Alto de São João não foram menos penosos. Os pais da Jinx choraram agarrados ao caixão da filha como duas lapas gigantescas, enquanto todos nós assistíamos à tragédia impotentes para fazer alguma coisa.
Mais tarde foi depositada sobre o caixão uma magnífica coroa repleta de rosas e de mais umas não sei quantas flores que eu desconhecia. Por ultimo um par de homens começou a espalhar pequenas pazadas de terra sobre o caixão. Um silêncio enorme gerou-se à nossa volta quando a terra voltou a ficar em paz. Surpreendeu-me o facto de não ver a Rute a cirandar por ali.
No pequeno café onde fomos a seguir, nas redondezas do cemitério, um buraco escuro e malcheiroso, acerquei-me de Rafael e perguntei-lhe:
— O que é que aconteceu à Rute?
— Estava mal disposta e resolveu voltar para casa.
Não quis saber de mais nada. Aquela já não era a minha vida. Só me apetecia era mesmo ir-me embora e desejar a todos que fossem o mais felizes possíveis. Mas não consegui. Não podia voltar a abandoná-los. O truque teria de ser outro.
Mais tarde, quando o cheiro daquele buraco começava a tornar-se insuportável, o Jerónimo apareceu com o seu velhinho Renault Clio vermelho, o mesmo que nos tinha levado a mim e à Jinx ao Alentejo à um ano atrás. Decidimos depois ir até casa do Rafael ouvir uns discos e beber mais uma quantas bejecas.
Os bons velhos tempos estavam a voltar, pensei, enquanto seguíamos a Morais Soares abaixo, entalados no interior daquela carripana que chiava estrondosamente a cada guinada do volante. E depois pensei em como as coisas podem mudar drasticamente de um momento para o outro e que as consequências podem ser graves se não estivermos atentos a elas.
E enquanto passávamos por aquelas ruas que me pareciam já tão distantes da minha vida, fui tomando consciência que íamos todos envelhecendo aos poucos, mas que, afinal, ainda poderia haver esperança e não deixar morrer um sonho que nos enchia por completo.
Já em casa do Rafael, enquanto o leitor de CD’s mastigava uma canção dos Stereo Total, resolvi tomar a palavra, assim, de chofre:
— Penso que deveríamos continuar o trabalho dos Sexy Boys.


11
STONED
by Dido




2007

A Jinx cortou uma fatia de quiche e introduziu-ma na boca juntamente com todos os seus dedos. Eu lambi-os até lhe sugar toda a gordura que escorria das mãos. Ela soltou uma gargalhada, envolveu-me a cintura com as pernas e tocou-me com as mãos no pénis.
Puxei uma passa do charro e o fumo azul ficou a pairar sobre as nossas cabeças como uma auréola de luz. Cheguei-me mais a ela e passei com a língua pela curva do pescoço. Ela soltou uma risadinha, encolheu-se um pouco, tornou a soltar outra risadinha e deixou-se cair para trás, os cabelos espalhados pela cama.
Debrucei-me sobre ela, o meu pénis rondando os lábios da vagina dela. Chupei-lhe os bicos dos seios, primeiro, depois o umbigo, a barriga e então senti-lhe a humidade do sexo.
Os nossos corações pulsavam energicamente ao fim de um bocado. Vim-me dentro dela em espasmos gritantes enquanto ela me prendia com os braços. Acendemos mais um charro e fumámo-lo em silêncio, sem preocupações, sem remorsos e sem angústias. De cabeças completamente livres de quaisquer dúvidas.
Quando adormecemos por fim, enrolados um no outro, e o barulho ensurdecedor da rua entrava pela janela aberta do quarto, apenas uma canção me enchia a cabeça e para sempre ficaria gravada na minha memória como um fóssil indestrutível.
A canção chegava-me de muito longe, como se o António Variações me sussurrasse, aos ouvidos, um futuro que, subvertidamente, se aproximava de nós, sorrateiro e intratável. Pouco depois nada mais ouvia senão um zumbido à minha volta: uma erva daninha a alastrar-se.


12
DANCE… DANCE… DANCE…
by Lykke Li




2009

Àquela hora do dia já a luz atravessava as persianas da janela e principiava a incidir sobre alguns dos instrumentos que ali estavam espalhados. Era como se recuasse dois anos atrás e abandonasse, de novo, tudo aquilo que os meus pais queriam para mim, para que eu pudesse abraçar uma carreira praticamente insegura, segundo eles.
Peguei na guitarra que jazia encostada à parede e não soube o que lhe fazer. Há dois anos que me dedicava a uma vida insensata atrás de uma secretária a introduzir dados num computador sem saber muito bem para o que é que aquilo servia.
O Rafael apareceu pouco depois com duas latas de cerveja a pingarem humidade na alcatifa. Abriu uma e deu-ma. Depois sentou-se atrás da bateria e sorveu um grande golo da sua cerveja. Pegou nas baquetas e começou a improvisar.
Foi uma questão de segundos. Pouco depois apareciam o Leboni, o Jerónimo e o Blacky que estavam na sala ao lado a conversarem. Cada um pegou no seu instrumento e, muito lentamente, começou a fazer-se música naquele quarto de quatro paredes descarnadas. Eu demorei um pouco mais até conseguir tocar nas cordas da guitarra e fazer com que os dedos deslizassem por ela sem qualquer receio.
Ao fim de um bom bocado, estávamos já todos concentrados e envolvidos numa jam meio electro-jazz meio bossa-nova. Contudo e, quando parecia que os fantasmas haviam desaparecido de vez, ninguém se atrevia ainda a cantar. Estávamos todos recolhidos a um ensimesmamento silencioso, como se buscássemos alguma verdade espiritual para lá da música.
Ainda não estávamos a dançar, é certo, mas parecia que afinal ainda podia haver esperança para nós. Para todos nós. Até para Jinx que, acreditava eu, estaria também àquela hora provavelmente a preparar-se para dançar connosco.


Sobreda da Caparica
2009

sangue simples

PRÓLOGO




Ribeira de Mansos, 1960




            Genoveva das Dores ergueu-se arrepiada ante a visão da irmã:
         — O que queres tu daqui?
         Maria Adelaide estendeu o dedo indicador para a irmã e exclamou, benevolente:
         — Meu Deus, Genoveva, o que fazes aqui de avental? Hoje é o dia do meu casamento e não quero ver-te assim.
         Genoveva das Dores inclinou-se ao de leve para beijar a irmã.
         — Estás muito bonita, Adelaide.
         A rapariga abriu a boca num sorriso satisfeito e disse:
         — Vamos lá, Genoveva, larga isso e vem divertir-te, a festa está o máximo.
         Genoveva das Dores encerrou-se num risinho ofegante e levou-a à porta, entre muitas desculpas e muita consternação:
         — Não te preocupes comigo, querida, vai e diverte-te.
         Maria Adelaide encarou-a com um tremor nas faces e afastou-se dali com passinhos ligeiros de garça. O vestido branco, roçando o chão como uma cauda muito sofridamente.
         Quando Genoveva das Dores se debruçou de novo para as panelas e os tachos e os talheres e os copos e os pratos sujos, um barulho de portas, que batiam contra as paredes, fê-la voltar-se assustada.
         Belmiro Azedo das Flores estava à entrada da cozinha com o cinto das calças desapertado e as faces tão quentes que avermelhou de receio o ar da cozinha. Genoveva das Dores sorriu tentando converter o asco que ele lhe causava em timidez de virgem.
         — Hás-de ser minha, Genoveva — prometeu ele segurando-a pelos pulsos.
         Ela afastou-se e fez-lhe um sorriso terno:
         — Por favor, Belmiro, estás bêbado.
         Mas já ele se tinha liberto das calças e sufocava-a com a liquescência da ponta da língua:
         — Hás-de ser minha, Genoveva.
        
E a mulher a tentar fugir, a pegar-lhe nas mãos e a afastá-lo com violência. E ele a libertá-la do avental de plástico, a chamá-la pelo nome:
         — Genoveva…
         A tocá-la nos seios, que emergiam como gelatina no decote do vestido, a prender-lhe a boca na boca dele, a garantir-lhe:
         — Hás-de ser minha, Genoveva.
         E ela a compreender então que não poderia mais adiar aquele dia, por mais que isso lhe custasse:
         — Faz o que tens a fazer.
         E ele a derrubá-la sobre a mesa da cozinha, a procurar-lhe o sexo escondido, a segredar-lhe desejos de garoto, enquanto o corpo tremia como uma vara verde:
         — Vais ver como é bom.
         E ela sentindo-se suja, com os lábios esborratados a recolhê-lo dentro de si, a ampará-lo com os joelhos, irritada, desinteressada de todos e de tudo o que acontecia ao cimo da terra.




A ESTÓRIA NO VERDADEIRO SENTIDO DA PALAVRA




Ribeira de Mansos, 1965


1.

         A minha cidade tinha um rio donde sobe hoje o cheiro a corações de lodo, isto murmurava o padre António quando entrou na igreja de Ribeira de Mansos. Parou junto do altar e, num gesto comprometedor, limpou o suor do pescoço. Depois chamou pelo acólito José: um eco ressonante pareceu sobrevir das paredes velhas. No altar, um Cristo de madeira já descolorido, olhava-o complacente.
         O padre António arranjou melhor a voz e tornou a chamar pelo acólito. Olhou o Cristo no altar, benzeu-se, pediu perdão e foi até à sacristia. Ao entrar na pequena sala apercebeu-se que o acólito tinha armado uma das suas. Levou à boca a mão em concha e tossiu várias vezes. O acólito apareceu então atrás da porta dos lavabos. Tinha um ar assustado e uns olhos muito pequeninos.
         — A fumar de novo, José?
         — Por favor, padre, não me bata.
         O padre António olhou-o com resignação e murmurou:
         — Não te preocupes, José, bater-te já não vai resolver nada, já estou cansado.
         O padre António sentou-se na cadeira de baloiço que tinha junto da janela e ficou a ver a aldeia nascer. Todos os dias os mesmos rostos lhe acenavam adeuses iguais. E todos os dias via a aldeia crescer com o mesmo entusiasmo de há nove anos atrás. Era já um hábito sentar-se ali antes do almoço.
         Só aos domingos, depois da missa das sete, o padre dava um passeio para lá da última casa da aldeia. Costumava subir ao monte onde o silêncio era mais sonolento e onde não havia ninguém. Sentava-se debaixo da única figueira que lá havia, não muito longe da praia, e punha-se a falar com Deus.
         No entanto, naquela manhã de sábado, o padre António resolveu subir ao monte. Tinha urgência em estar mais perto de Deus. Avisou o acólito que chegaria mais tarde para o almoço e antes de sair disse num tom muito solene:
         — Quando voltar precisamos de falar.


2.

         O doutor Ramiro de Jesus acordou quando o despertador bateu as dez horas. Voltou-se na cama e encontrou a seu lado a imobilidade do corpo da mulher. Passou a mão pelo sexo e resolveu erguer-se. Caminhou descalço até à cozinha e serviu-se de uma cerveja gelada. Da porta entreaberta conseguia ver o volume largo das ancas dela. Tornou a passar a mão pelo sexo mas não sentiu qualquer tipo de sentimento.
         Acabou a cerveja e enrolou um cigarro. No fim passou a língua pela mortalha e entrou novamente no quarto. Procurou os sapatos, vestiu umas calças pretas de linho e uma camisa branca. Sentou-se na cama e ficou a ver a respiração vagarosa da mulher. Os mosquitos voavam numa amálgama de asas e havia um ar fuliginoso no quarto. Beijou-lhe as nádegas nuas e saiu para a rua.


3.

         — Bom dia, doutor — disse o padre António ao cruzar-se na rua com o doutor Ramiro de Jesus.
         — Viva, padre, belo dia, não?
         — Os dias assim provocam-me arrepios, doutor.
         — Gostava muito de ficar aqui na conversa consigo, padre, mas os doentes são pessoas que não podem esperar.
         — É de gente como você que esta aldeia precisa, doutor. Ah, só mais uma coisa.
         Mas já o doutor Ramiro de Jesus se havia afastado quando o padre António se virou para dizer:
         — Um dia destes temos de falar, doutor.
         O doutor acenou-lhe um adeus apressado sem se voltar e pouco depois entrava na taberna do Chico Morgas. Pediu uma sandes de presunto e um copo de vinho branco.
         A rapariguinha que estava a limpar as mesas sorriu-lhe uns dentes não muito brancos e perguntou-lhe se tinha muito que fazer naquele dia. O doutor piscou o olho ao Chico Morgas que os escutava do outro lado do balcão e comentou:
         — Estás muito bonita, Carminda, mas hoje não pode ser.
         — E mais logo, doutor? Só um bocadinho.
         — Tens de compreender uma coisa, Carminda, quando eu digo que não pode ser é porque não pode ser mesmo — o doutor deu uma dentada na sandes e olhou de novo a rapariguinha. Depois reforçou:
         — E se continuas a teimar comigo as coisas só vão piorar para o teu lado. Talvez amanhã, hoje não pode ser.
         O doutor Ramiro de Jesus acabou a sandes num suspiro de satisfação e bebeu num só trago o vinho que restava no copo. Deitou umas moedas sobre o balcão e saiu da taberna a limpar o suor do pescoço. Quando chegou à rua, olhou uma vez mais para Carminda, piscou-lhe o olho e confirmou:
         — Amanhã, pequena.
         Carminda baixou os olhos e pôs-se a arrumar as peças de dominó que estavam espalhadas em cima da mesa. O Chico Morgas saiu de trás do balcão a contestar:
         — Eu bem te disse para não te meteres com homens casados, miúda.
         Carminda não levantou os olhos. Acabou de arrumar a mesa e começou a chorar.
         — Só me faltava mais esta agora — disse, irritado, o taberneiro. — Acaba com essa choradeira e vai para casa.
         O taberneiro ajeitou as pontas do bigode desgrenhado e acrescentou ainda:
         — No entanto, se quiseres, podes muito bem ficar comigo.
         Carminda ergueu então os olhos de água e indignou-se:
         — Vai à merda, gordo nojento.
         Chico Morgas ficou a ver a rapariguinha desaparecer no sol da rua. Quando se voltou para enfrentar as moscas que rodeavam a caixa dos queijos tinha um sorriso escarninho no canto dos lábios.


4.

         Deolinda de Jesus estava a tomar o pequeno-almoço quando bateram à porta. Acabou de comer a torrada e abriu a porta. Era o carteiro. Deolinda de Jesus sentiu o coração parar:
         — Xavier!?
         — Estava cheio de saudades tuas, meu amor.
         — Mas agora, a esta hora?
         — O amor não tem hora marcada, minha pomba branca.
         — E o meu marido, Xavier?
         — Então, vais-me convidar a entrar ou quê? — perguntou ansioso.
         Deolinda de Jesus ajeitou o decote da blusa e mordeu os lábios. Quando se afastou para o deixar entrar levou as mãos ao peito. O coração estalava.
         O carteiro serviu-se de um pouco de café, acendeu um cigarro e observou a mulher com interesse.
         — Estás linda como sempre, meu amor.
         — Tenho medo, Xavier, acho que estamos a arriscar-nos demasiado.
         — Não sejas piegas, meu amor, ninguém nos virá chatear a esta hora e, alem do mais, o teu maridinho deve andar aí enrolado com uma puta qualquer, por isso não deve voltar tão depressa.
         O carteiro tirou o boné, deu uma passa longa no cigarro, acabou o café e aproximou-se dela. Pousou uma mão sobre o seio esquerdo da mulher e apertou-lhe o mamilo retesado. Deolinda de Jesus fechou os olhos, sentiu os seios engrandecerem-se e foi invadida por uma torrente servil de glórias. Depois abriu a boca húmida e pediu:
           Fode-me, Xavier.


5.

         O padre António subiu ao monte com a mesma agilidade de sempre. Lá em cima o vento soprava muito timidamente e algumas gaivotas voavam muito baixo. O padre António aproximou-se da figueira e ouviu o rumor do mar. Já estava ali à algum tempo quando se apercebeu do ruído que as gaivotas faziam.
         Ergueu-se, constrangido por ter interrompido os seus pensamentos, e olhou para cima. As gaivotas enchiam de negro todo o espaço do céu. Algumas faziam voos rasantes a tocar a areia. E foi então que ele vislumbrou um corpo estendido ao longe.
         Correu o mais que pôde mas a sotaina prendia-se-lhe aos pés. Quando chegou junto ao corpo o sol batia-lhe em cheio na corola da cabeça. E então aconteceu: o padre António conteve a respiração e benzeu-se três vezes quando reconheceu o morto.


6.

         Genoveva das Dores abriu os braços num sorriso envelhecido. Beijou ao de leve a testa magra de Carminda e limpou-lhe as lágrimas da face. A rapariguinha ergueu os olhos negros e comentou num soluço:
         — A minha vida é uma porcaria, avozinha.
         — Não digas disparates, Carminda, a tua mãe educou-te sempre da melhor maneira. Nunca te esqueças disso.
         — E o meu pai, avozinha? Porque nunca fala dele?
         Genoveva das Dores sentiu um puxão no coração.
         — Já te pedi para não tocares nesse assunto, Carminda.
         — Mas porquê, avozinha? Eu já não sou nenhuma mocinha. A senhora sabe que eu já percebo as coisas.
         Genoveva das Dores deixou escapar uma risadinha nervosa e depois disse:
         — O teu pai era um bandido, Carminda. Depois de Cândida das Flores morrer, que Deus a tenha em bom sossego… — a velha calou-se para fazer o sinal da cruz e depois continuou, — ele deixou-nos às duas para aqui esquecidas nesta terra de ninguém.
         — Pelo menos ele teve essa decência.
         — Decência? Qual decência, Carminda?
         — A decência de esperar que a mamã morresse para depois então partir.
         — Fugir, queres tu dizer, fugir.
         Genoveva das Dores rectificou o tom de voz e apertou os braços da neta dizendo bem alto:
         — Nunca mais te dirijas ao teu pai como se ele fosse uma pessoa distinta. A única distinção que ele teve na vida foi o amor da tua mãe.
         Carminda fechou os olhos e pensou na mãe. Não se recordava muito bem dela. Sabia que tinha sido uma das senhoras mais distintas da aldeia e a mulher mais bela que alguma vez tinha visto.
         — Aquele traste velho do Chico Morgas andou a fazer das suas, não foi?
         — Não, avozinha, não foi nada.
         As duas mulheres calaram-se e ficaram muito tempo abraçadas num silêncio fúnebre. Pouco depois Carminda confessou:
         — Um dia quero ser como a mamã.
         E então Genoveva das Dores recordou o passado com uma dor terrível nos olhos.


7.

         O comissário Lúcio Tavares acabava de acender uma cigarrilha cubana quando ouviu a voz do padre António gritar lá fora. Ajeitou-se melhor na cadeira rotativa de carvalho e esperou. O padre António irrompeu na delegacia envolto numa nuvem de suor.
         — Comissário, — chamou o padre António, — tem de vir depressa.
         O comissário, que era um homem corpulento e de gestos lentos, deixou cair os ombros contra o espaldar da cadeira rotativa de carvalho e disse:
         — Nada de pressas, padre, puxe uma cadeira e conte-me o que se passa.
         — Não há tempo — gritou o padre.
         — Há tempo para tudo, padre, é só querermos e as coisas acontecem.
         O comissário falava pausadamente e sorvia de vez em quando a cigarrilha cubana. Franziu o sobrolho esquerdo e falou para a porta entreaberta dos lavabos:
         — Trás um copo de água para o senhor padre, Castro.
         Pouco depois o guarda Castro entrava na sala com um copo de água. O padre António puxou de uma cadeira e sentou-se com o coração nas mãos. Olhou o comissário como se olha um estranho e demorou-se a organizar as ideias.
         — Encontrei o corpo de um homem na praia — avançou o padre António com esforço.
         — Morto? — inquiriu o comissário ao mover os ombros para a frente.
         — Mais morto não pode estar, comissário.
         O comissário olhou bem fundo os olhos do padre e abriu os braços à espera de um nome. O padre António bebeu um golo demorado de água, limpou o suor da testa com um lenço e então falou:
         — Belmiro Azedo das Flores.


8.

         — Não tens serviço a fazer, Xavier? — quis saber Deolinda de Jesus.
         — Sossega, minha pomba branca.
         Deolinda de Jesus ergueu-se na cama e ficou a observar-se no espelho em frente. Tinha os seios amolecidos mas os mamilos mantinham ainda a consistência da juventude.
         Quando sentiu as mãos de Xavier nas costas nuas deixou resvalar uma lágrima pela face. Teve vontade de chorar ainda mais mas não o fez. Limpou os olhos e tornou a deitar-se. Aconchegou-se mais ao corpo quente do amante e pediu num sussurro quase judicioso:
         — Foge comigo, Xavier.


9.

         Era meio-dia em ponto quando o doutor Ramiro de Jesus saiu de casa da viúva Zulmira Pontes. Trazia um sorriso nos lábios e a camisa amarrotada. Ajeitou melhor a braguilha das calças e foi confrontado com o olhar do carteiro Xavier.
         — Ora viva, doutor.
         O doutor Ramiro de Jesus deixou escapar um “igualmente” muito atrapalhado e virou uma esquina quase a correr. Ao longe, junto à delegacia, uma multidão espreitava por cima dos ombros uns dos outros.
         O doutor afastou com dificuldade a multidão da sua frente e entrou na delegacia. Estavam lá o padre António e o comissário Lúcio Tavares mais o guarda Castro. Foi o comissário quem primeiro falou:
         — Já não era sem tempo, doutor.
         — O que aconteceu? — perguntou, olhando a multidão lá fora.
         — Faz um bom tempo que os meus guardas o procuram, doutor.
         — Tenho estado a trabalhar, comissário — desculpou-se.
         — Pois… — anuiu o comissário, ordenando que fechassem a porta da rua.
         — Mas afinal o que vem a ser toda esta confusão, comissário?
         O comissário Lúcio Tavares reclinou-se na cadeira rotativa de carvalho, apertou a cigarrilha entre os molares e olhou o doutor Ramiro de Jesus:
         — Encontraram um cadáver lá na praia, doutor, e não fosse a obstinação do padre António a esta hora já o mar o teria engolido. Temos estado à sua espera para uma opinião mais técnica.
         — E onde está o cadáver?
         O comissário indicou ao guarda Castro que acompanhasse o doutor à cela onde estava o cadáver e lançou uma baforada longa pelo calor da sala. O doutor Ramiro de Jesus regressava pouco depois com uma expressão de terror no rosto:
         — É mesmo ele?


10.

         Deolinda de Jesus limpou as lágrimas e sentou-se na cama. Tinha o corpo frio e uma dor tremenda no coração. Levou as mãos aos seios nus e estremeceu. O relógio de parede bateu as duas horas e um cão ladrou lá fora.
         Deolinda de Jesus levou depois as mãos ao sexo e apertou-o muito suavemente. Pensou em Xavier e pensou em como se sentia tão sozinha. Depois ficou com fome. Foi até à cozinha e preparou uma chávena de café.
         Nesse momento a porta da rua abriu-se. O doutor Ramiro de Jesus apareceu na cozinha lavado em suores. Tinha um ar abatido e a roupa amarrotada.
         — O que tens? — perguntou o doutor quando encontrou a mulher completamente nua junto à janela.
         Deolinda de Jesus olhou-o com desinteresse e disse:
         — Estou com calor.
         — Acho melhor saíres dai, mulher, não vão as pessoas começarem a dizer coisas.
         — O que eu quero mais nesta vida é que todas as pessoas desta aldeia se fodam, ouviste bem?
         O doutor levou um lenço à testa e limpou o suor. Tinha a cara a arder de calor.
         — Por favor, mulher, tu não me compliques a vida, já tenho chatices que cheguem.
         O doutor virou-lhe as costas e antes de desaparecer nos lavabos disse ainda:
         — Encontraram um cadáver lá na praia.
         Deolinda de Jesus olhou pela janela e só então se apercebeu da azáfama na aldeia. Havia pessoas na rua a circularem com ares de mau agoiro e outras a cochicharem os nervosismos da idade. E então Deolinda de Jesus pensou em fugir sozinha.


11.

         Genoveva das Dores recebeu a notícia de um modo desapaixonado. Convidou o comissário a sentar-se e pediu a Carminda que trouxesse chá. A rapariguinha apareceu pouco depois com o coração nas mãos. O comissário acendeu uma das suas cigarrilhas cubanas e suspirou de enfado:
         — Respira-se mal aqui dentro.
         — E como é que isso aconteceu, comissário? — Perguntou Carminda.
         O comissário discerniu um brilho inquieto nas pupilas da rapariguinha e sorriu. Depois, virando-se para Genoveva das Dores, murmurou:
         — Era mais apropriado se a menina aqui não estivesse, dona Genoveva.
         — Belmiro Azedo das Flores era pai de Carminda, comissário, ela tem todo o direito de saber o que se passou.
         Genoveva das Dores bebeu um golo de chá e ficou à espera. O comissário remexeu-se na cadeira e tornou a olhar para Carminda e depois para a velha. Mordeu a cigarrilha e então falou:
         — O corpo foi encontrado com uma bala na cabeça. Tinha a pele dos braços comida pelas gaivotas e o doutor Ramiro de Jesus julga que ele esteja morto desde as oito horas da manhã.
         O comissário Lúcio Tavares acabou de beber o chá e ergueu-se com uma calma gigantesca. Deu o seu pesar às duas mulheres e despediu-se com um aceno silencioso de cabeça. Porém, antes de sair, voltou-se ainda uma vez mais para enfrentar o olhar vazio de Carminda. Depois agradeceu o chá e saiu para o calor da rua.



12.

         À porta da taberna do Chico Morgas uma multidão de homens de ar cansado acotovelava-se numa balbúrdia de vozes. Alguns falavam sobre o passado de Belmiro Azedo das Flores enquanto outros, mais reservados, remexiam as peças do dominó espalhadas ao acaso sobre as mesas.
         Chico Morgas estava nas traseiras a mijar quando ouviu a voz do comissário mandar calar os homens. Apressou-se a esconder a espingarda que tinha estado a limpar e apareceu atrás do balcão com um ar assustado. O comissário apercebeu-se do seu estado quando o viu entrar e então gracejou:
         — Parece que viste uma alma penada, ó Chico!
         — Não é nada, comissário.
         — Bom — disse o outro, — espero que não me andes a esconder nada.
         O taberneiro encolheu os ombros em sinal de que não sabia de nada e apressou-se a servir ao comissário um copo de vinho.
         — E a menina, comissário? — Perguntou o taberneiro. — Falou com a menina? Há muito trabalho a fazer aqui.
         O comissário levou à boca o copo de vinho e bebeu-o de uma só vez. Fez depois uma careta de desaprovação e arrotou. Em seguida olhou o taberneiro e bradou:
         — Esta merda está cada vez pior, ó Chico.
         Houve uma gargalhada geral entre os presentes e o comissário acrescentou logo de seguida:
         — Outra coisa, ó Chico, trata mas é de arrumares este barraco porque a menina hoje não vem.
         O comissário ficou à espera que alguém dissesse alguma coisa mas o silêncio que se instalou de seguida foi quase atormentador até que alguém questionou:
         — E agora, comissário, o que vai ser do morto?
         O comissário desviou o olhar para a rua e ficou pensativo. Lembrou-se do dia em que tinha chegado àquela aldeia com uma mala de cartão e o sino da igreja a bater as sete horas.
         — Enquanto não se encontrar a arma do crime pouco se pode fazer — justificou, dirigindo o olhar a todos os homens que o escutavam. — Amanhã, quando os ânimos tiverem serenado, faremos o enterro.
         — Esse bandido devia era ser deixado aí aos pássaros, comissário, homem nenhum da espécie dele deve ser enterrado em terra santa.
         — Qualquer homem tem o direito ao seu enterro, Hipólito — teorizou o comissário. — Não espero que algum de vocês apareça amanhã ao enterro, mas garanto-vos que se o fizerem Deus há-de-vos perdoar.
           O comissário limpou a boca à manga da camisa e viu alguém entrar na delegacia. Esperou um pouco e só depois se apercebeu que era a menina Clarisse. Endireitou as golas da camisa suada e mesmo antes de se despedir dos homens disse com desdém para com o taberneiro:
         — Vê lá se arranjas uma zurrapa melhor que esta, ó Chico, e trata de não me complicares a vida, está bem?


13.

         A igreja estava em silêncio e entrava uma luz muito ténue pelos vitrais da clarabóia. O padre António chegou-se ao altar e benzeu-se demoradamente. Tinha acabado de almoçar e sentia-se indisposto. Moveu os olhos num desarrumo de sobrancelhas e só então se apercebeu do cheiro forte a tabaco. Fechou os olhos constrangido e rezou um Pai-nosso sem qualquer convicção.
         E, nesse momento, pela primeira vez na vida, o padre António sentiu-se velho. Pegou no chicote que tinha comprado numa feira em Azeitão e torceu-o com ferocidade. A pele cedeu com dificuldade e o chicote estalou no ar com um silvo agudo. Ele não queria fazer aquilo, mas a vida ensinou-lhe que os brandos costumes têm de ser explicados com intenções sérias.


14.

         — Menina Clarisse — sorriu o comissário Lúcio Tavares. — É com grande prazer que nos voltamos a encontrar.
         — Comissário — disse a mulher estendendo-lhe a mão direita.
          O comissário beijou-a demoradamente na mão e indicou-lhe com um gesto vago uma cadeira. Mandou sair o guarda Castro e sentou-se ele também. A mulher esperou que o guarda desaparecesse de vista para murmurar:
         — Tenho um pedido a fazer-te.
         — Sou todo ouvidos.
         — Tenho o padre António à perna, Lúcio.
         O comissário apoiou os braços no tampo da secretária e perguntou aflito:
         — Mas ele não sabe que tu…
         — Não, não sabe — interrompeu a mulher. — Eu é que já estou a ficar farta de o ver sempre atrás de mim com a mesma conversa de merda.
         — É natural, ao fim e ao cabo ele é padre, e como tal, preocupa-se.
         — Quero mais é que ele se fôda.
         — Baixa-me essa matraca, raios, não é seguro falar disso aqui.
         — Desculpa.
         — Esse teu mau feitio há-de ainda um dia levar-nos à cova.
         A menina Clarisse mordeu os lábios e ajeitou o decote da blusa. O comissário recostou-se na cadeira rotativa de carvalho e distinguiu, por um breve mas fulgurante instante, o desenho rendilhado do soutien da menina Clarisse. Esta apercebeu-se da inquietação no olhar do comissário e atreveu-se a dizer:
         — Se quiseres podemos ir lá para casa.
         — Não, agora não pode ser, tenho muito que fazer.
         — Bom — murmurou a mulher sacudindo um grãozinho de pó da saia, — como é que fica a minha situação?
         — Não te preocupes, eu trato do assunto.
         A menina Clarisse ergueu-se, puxou a saia para baixo com ambas as mãos e passou a língua pelos lábios ainda num último desafio.
15.

         Sobre a mesinha de cabeceira de bambu, o retrato de Cândida das Flores parecia saído de um filme a preto e branco. A imagem, baça e já sem cor, remontava a uma época em que a corrida ao ouro fervilhava por toda a região.
         Genoveva das Dores segurou o retrato com ambas as mãos e sentiu uma lágrima desprender-se dos olhos cansados. Apertou o retrato contra o peito com um sentimento de culpa muito grande e reviu-se naquela mesma casa, há cinco anos atrás, quando Belmiro Azedo das Flores lhe segurou nos pulsos e lhe garantiu, com fervorosa consciência, que um dia dormiria com ela.
         Aconteceu três dias depois, na festa de casamento da sua irmã mais nova. Genoveva da Dores estava na cozinha enrolada num avental de plástico quando Belmiro Azedo das Flores entrou com o cinto das calças desapertado. Genoveva das Dores notou-lhe um brilho de regozijo nos olhos e compreendeu então que não poderia mais adiar aquele dia, por mais que esse desassossego lhe custasse.
         Genoveva das Dores pousou o retrato da filha na mesinha de cabeceira de bambu e chorou durante todo o dia, até se lhe acabarem as lágrimas humanamente possíveis.


16.

         O doutor Ramiro de Jesus acendeu um cigarro e pôs-se a escutar os ruídos que vinham da rua. Fez sinal ao Chico Morgas que tornasse a encher o copo e declinou os pensamentos para um recanto apagado da memória. Depois inquiriu ao taberneiro:
         Ouvi dizer que hoje o dia não vai acabar. Acreditas nisso, Chico?
         — Não percebo nada dessas coisas, doutor.
         — Não me lembro de um dia tão quente como este.
         — Isto até parece coisa do demo, doutor.
         — Não digas esses disparates, Chico, vê lá se o padre António te ouve.
         Chico Morgas puxou uma cadeira e sentou-se na mesma mesa do doutor. Franziu o sobrolho e perguntou a medo:
         — O que se passa, doutor? Acho-o muito distante.
         O doutor olhou para os lados a ver se alguém os escutava e depois questionou:
         — Acreditas nas mulheres, Chico?
         — Desprezo-as — foi a resposta imediata do taberneiro.
         — Estou com problemas, Chico — o doutor olhou para o cigarro e depois para o seu interlocutor. — É a minha mulher, quer deixar-me.
         — Isso não me surpreende, doutor.
         O doutor Ramiro de Jesus fixou o olhar na oxidação do tempo. Há anos que também ele se queria ir embora mas havia algo que o prendia àquela terra.
         — A sua mulher não é desta terra, doutor, ela não está habituada a estas coisas.
         — Eu é que não posso abandonar esta aldeia, Chico.
         — E porquê, doutor? O que é que o prende de tão importante a esta terra?
         — Foi uma promessa que fiz ao meu pai muito antes dele morrer.
         — Compreendo, doutor, mas… diga-me uma coisa: será isso correcto?
         — O que queres dizer?
         — O que eu quero dizer, doutor, é isto: será que é correcto perder uma mulher só por causa de uma promessa? Tenho quase a certeza que o seu pai compreenderia a situação. Aqui não há nada, ouviu bem, doutor? Nada. Vá-se embora antes que a sua mulher se decida a fazê-lo sem o seu consentimento.
         — Não posso, Chico, promessas são coisas a que não se deve faltar.
         — Então para que trouxe essa mulher para cá, doutor?
         As torrentes de luz que inundavam o rosto do taberneiro não permitiam ao doutor enxergar num primeiro volver de olhos o sorriso de escarninho no canto dos lábios. O doutor ergueu-se e acabou o resto do vinho. Depois rematou, aborrecido:
         — Não sei.
         Ramiro de Jesus deixou umas moedas sobre a mesa e saiu da taberna a limpar o suor do pescoço. Pouco depois entravam dois homens na taberna. Eram quase cinco horas da tarde e toda a aldeia caía numa morrinha de calor.


17.

         Quando Genoveva das Dores entrou na igreja foi encontrar o padre António ajoelhado junto ao altar-mor com as mãos entrelaçadas uma na outra.
         — Padre… — murmurou.
         O padre António parou de rezar e abriu os olhos. Tornou a fechá-los e depois abriu-os novamente de fúria. Desde criança que tinha aquele geniozinho de desprezo para com alguém que o interrompesse. Quando se virou para enfrentar o olhar de Genoveva das Dores, o padre António notou a enorme aflição que lhe ia no coração.
         — Preciso de me confessar, padre.
         O padre António limpou o suor da testa e disse:
         — Agora não, dona Genoveva, acabei de ter uma discussão com o José e estou muito nervoso.
         — Pensava que já se tinha deixado desses desacertos com o moço, padre.
         — Por favor, dona Genoveva, não me massacre também você a minha paciência.
         — Padre! — Interrompeu furiosa. — Eu sei quem matou Belmiro Azedo das Flores.
         Anos mais tarde e já com os sentidos completamente alterados e com a memória bloqueada, o padre António não conseguiria, por um instante que fosse, esquecer aquele dia em que se comprometera com Deus a guardar sigilo sobre o acto criminoso mais horrível de todos os tempos na povoação de Ribeira de Mansos.



18.

         — E agora, comissário — perguntou o doutor Ramiro de Jesus, — o que vai fazer?
         O comissário Lúcio Tavares acendeu uma cigarrilha e replicou:
         — O que deve ser feito.
         A garganta do outro pareceu contrair-se mas limitou-se a baixar os olhos. O comissário prosseguiu:
         — Amanhã será feito um funeral digno a esse pobre coitado e depois é só esperar.
         — Esperar? Esperar o quê, comissário?
         Estavam sentados de frente um para o outro. Corria uma brisa muito suave e ouvia-se, de vez em quando, um cântico entoado por muitas vozes.
         — Esperar o quê, comissário? — Tornou o doutor.
         — Esperar? Ah, sim — exclamou o comissário, — é preciso esperar que apareça a arma do crime.
         — Já pensou que essa arma pode nunca aparecer, comissário? — Atreveu-se a dizer o seu interlocutor.
         — Os meus homens já correram o monte todo e não encontraram nada.
         — E como vai fazer? Interrogar toda a aldeia?
         — Pois… — Murmurou.
         — Esta gente é pobre de espírito, comissário, eles não têm imaginação suficiente para matar alguém. Não, não acredito que o assassino seja de cá.
         — Por isso é que preciso da sua ajuda.
         — Para quê? — Perguntou a medo.
         — Você é um tipo criterioso, doutor, não é como esses gajos que só sabem fazer aquilo que eu mando, percebe o que eu quero dizer?
         — Hum… — Fez ele.
         — Muito bem, há um ponto fundamental em toda esta história que nos escapa. Belmiro Azedo das Flores desapareceu há cinco anos atrás sem deixar rastro, não é verdade, doutor?
         — Sim — Confirmou este.
         — Ora bem — prosseguiu o comissário, — se ele fugiu foi porque alguém o queria matar, mas porque é que ele voltou?
         — Não se esqueça que nessa altura toda a gente o queria matar, comissário.
         — Sim, é verdade.
         — Mas isso também não justifica que o assassino seja de cá.
         — Certo, mas também não acredito que o assassino seja um forasteiro qualquer.
         — Sim, pode ser.
         — Por isso é que eu preciso da sua ajuda — repetiu o comissário.
         Houve um breve silêncio e depois o doutor disse:
         — Olhe, comissário, vou ver o que posso fazer.
         O comissário sorriu. Olhou depois para o relógio e acendeu uma cigarrilha. O doutor Ramiro de Jesus ergueu-se e desejou boas tardes. Depois pôs-se a andar. O comissário ficou a vê-lo afastar-se. Era baixinho, com um tronco grande demais, assim pareceu-lhe.



19.

         Carminda olhou para o cadáver do pai e não chorou. Belmiro Azedo das Flores era um homem de lábios carnudos e olhos grandes. Tinha uma tez morena e o corpo parecia inchado pelo calor. Carminda aproximou-se mais do caixão e foi como se tivesse sentido o frio do corpo do pai tocar-lhe a face, e então voltou para trás.
         — Não tenhas medo, minha filha.
         O padre António estava do outro lado do caixão. Olhava para ela com uma expressão trémula. E para ser mais convincente prosseguiu:
         — Não devemos ter medo dos mortos, pois é dos vivos de que devemos recear.
         Os olhos de Carminda tinham a exactidão da ingenuidade. O padre António pareceu distinguir uma lágrima no rosto da miúda, mas não, era apenas o brilho dos seus olhos.
         — Diga-me uma coisa, padre.
         O padre António aproximou-se mais. Alguns círios ardiam impassíveis à volta do caixão. Uma pequena brisa entrava por vezes pela porta dos fundos. Carminda estremeceu e depois continuou:
         — Já ouvi muita coisa por aí, padre, mas eu preciso de saber a verdade.
         — Lamento que só tenhas conhecido o teu pai nestas condições — comentou o padre.
         — É verdade o que as pessoas dizem?
         O padre António sentiu-se num aperto. E sentiu também uma certa irritação.
         — Hoje em dia as pessoas dizem muita coisa, minha filha.
         — A avozinha sempre me disse que as razões do coração são as mais fortes.
         — É verdade — respondeu o padre e olhou o morto. Tinha no rosto áspero uma imensidão de segredos guardados.
         — O teu pai foi uma pessoa muito cruel, Carminda — começou o padre. — As pessoas dizem que aquelas que têm muito dinheiro são insuportavelmente egoístas, não sei se isso é verdade ou não. O que eu sei é que o teu pai fez muito mal a esta pobre gente enquanto esteve no poder.
         O padre António chegou-se até à porta dos fundos e ficou a pensar em Genoveva das Dores. Lembrou-se de todas as suas palavras e teve pena dela. Depois virou-se e, encarando o corpo franzino de Carminda, disse:
         — Ele só não conseguiu destruir os sonhos desta gente porque Deus foi mais forte.
         Carminda aproximou-se então do caixão e deixou cair uma lágrima sobre o rosto imóvel do pai.
         — Quero que saibas que é contra a minha vontade que se faça este enterro — rematou o padre ao sair para a rua.
         Carminda baixou o rosto mas não conseguiu beijar o morto. O frio penetrava-lhe suavemente os ossos. Ela levou as mãos à cara e chorou num murmúrio.


20.

         — Porra, Julião — disse o taberneiro, batendo com o punho no balcão.
         Estavam três homens na taberna. Um deles era alto e magro, com um bigode estranhamente delicado e uns olhos muito pretos, como duas azeitonas gordas; o outro era mais baixo, mais gordo, com uns olhos muito pequeninos e tinha uma cicatriz na face esquerda do tamanho de uma noz. O Chico Morgas era o terceiro homem. Estavam a beber vinho e a comer chouriço assado. Uma pequena brisa sussurrava por entre as mesas vazias e ouvia-se, de vez em quando, um cântico entoado por muitas vozes.
         — Não devias ter cá vindo, Julião — continuou o taberneiro, — é mau sinal.
         — Pára de me aborreceres, caralho! — Exclamou o homem da cicatriz.
         — Se alguém te vê então é que vai ser a bonita, pá.
         — Ninguém nos vai ver, hombre — replicou desta vez o outro homem.
         O taberneiro direccionou o olhar para o homem das azeitonas gordas e perguntou:
         — Quem é este gajo, Julião?
         — Um amigo — respondeu o homem da cicatriz.
         O taberneiro não fez qualquer comentário. Voltou de novo o olhar para o homem da cicatriz e pediu:
         — Diz lá o que queres e desaparece-me da vista.
         O homem da cicatriz e que dava pelo nome de Julião mastigou um pouco de chouriço e, quando ia para falar, foi interrompido por um grito que vinha da rua:
         — Despacha-me aí um copito, ó Chico.
         Os dois homens voltaram-se ao mesmo tempo como dois cães atentos e foram confrontados com o tom severo com que o comissário Lúcio Tavares os olhava.
         — E já agora — continuou, — serve-me também um pouco desse chouriço.

                          

21.

         A viúva Zulmira Pontes acabava de ajeitar os ganchos do cabelo quando ouviu um assobio familiar. Foi à janela e descobriu o sorriso vivo do doutor Ramiro de Jesus. Ela fez-lhe sinal para entrar mas os seus olhos recusaram-se a falar.
         Zulmira Pontes era uma mulher de seios firmes e de lábios cheios. Tinha os olhos da cor da terra e um cabelo enorme que lhe caía sobre os ombros em forma de ondas. Era muito invejada pelas outras mulheres da aldeia porque temiam a sua riqueza e o desfalecimento dos maridos nos braços dela.
         Contudo, Zulmira Pontes, era uma mulher que não dava importância a essas inconveniências mesquinhas e, como tal, fechava-se muito na integridade do seu ser e punha-se a ler os romances de faca e alguidar que muitas vezes mandava vir de Lisboa. Costumava também ficar até tarde a ouvir discos antigos enquanto o sol se punha atrás do monte numa transparência purpúrea.
         Zulmira Pontes tinha acabado de pôr um vestido comprido com alças largas quando o doutor Ramiro de Jesus entrou. Demorou-se a observá-la com interesse e depois disse com muita calma:
         — Acho que estou cada vez…
         — Deixa-te de lérias, Ramiro — interrompeu a viúva, — se vieste cá para isso estás muito enganado.
         O doutor Ramiro de Jesus agarrou-a pelos ombros e pediu uma explicação.
         — Tenho de ir à missa, preciso de me confessar — foi tudo quanto disse.

        

                   
        


        
22.

         Deolinda de Jesus estava sentada na cama a fumar. Tinha vestido um soutien em cetim e uns calções de cós alto e olhava com nervosismo para os nós dos dedos. Pegou num monte de fotografias e reviu-as uma a uma até que o tempo parou no rosto impreciso de uma criança.
         — Sónia… — murmurou.
         Deolinda de Jesus baixou o olhar para o ventre liso e de novo para aqueles olhos pequeninos que a fixavam com urgência num tempo imóvel. Sentiu depois o peso das lágrimas nos olhos e uma brisa inquietante a sufocar--lhe o coração. Pouco depois chegava até ela um cântico entoado por muitas vozes.
         — Que raio de barulho é este? — Perguntou Xavier ao entrar no quarto.
          Deolinda de Jesus susteve a respiração mas não fez qualquer comentário. Apagou o cigarro e olhou para ele, em silêncio. Tinha o cabelo molhado e a barba mal escanhoada e cheirava a água-de-colónia.
         — Tenho uma coisa importante a dizer-te.
         — Por favor, meu amor, não vais recomeçar com essa história maluca de querer ir embora, pois não?
         — Eu já decidi tudo, Xavier.
         Ela fez uma pausa e depois continuou:
         — Vou-me embora hoje mesmo.
         — Porra! Mas porquê?
         — O meu lugar não é aqui, ainda não percebeste isso?
         — E eu? Como é que eu fico?
         Ela deu-lhe uma resposta imediata:
         — Tu não prestas, Xavier, só pensas em ti.
         Xavier ia a preparar a garganta para replicar das suas razões mas Deolinda de Jesus interrompeu-o furiosa:
         — Vai-te embora, nunca mais te quero ver na minha vida.
         Xavier da Cunha Rodrigues viria a desaparecer da vida de Deolinda de Jesus mas só muito mais tarde, quando o comboio que partiria para Lisboa se demorara a sair do apeadeiro à meia-noite e cinco. Mas, na verdade, Deolinda de Jesus recordaria para sempre esse momento de atraso que tanto a fizera envaidecer.


23.

         O comissário Lúcio Tavares sentou-se entre os homens e apresentou-se como sendo a autoridade máxima em Ribeira de Mansos. E logo depois acrescentou com apreensão:
         — E não gosto nada de estranhos.
         — Estes senhores são meus amigos, comissário — adiantou Chico Morgas.
         O comissário trincou um pedaço de chouriço e olhou para a cicatriz do homem que dava pelo nome de Julião. Este bebeu um golo de vinho e sentiu-   -se incomodado. Pouco depois perguntava:
         — Nós não nos conhecemos já, senhor?
         O comissário Lúcio Tavares que era um homem de gestos lentos e habituado a frases óbvias, puxou de uma cigarrilha cubana e, muito antes de acendê-la, disse com alguma parcimónia:
         — Não, acho que não.
         — Pois eu diria que conheço a sua cara de algum lugar — continuou o homem.
         — Não, não é possível.
         — Acha mesmo? Olhe que a sua cara não me é nada estranha.
         — Homessa! — Fez o comissário, mostrando algum desagrado. — Porque continua a insistir nisso? Já lhe disse que não o conheço de lado nenhum, homem.
         — Peço desculpa pelo meu amigo Julião, comissário — interveio Chico Morgas, — é que ele é um tipo muito viajado e, como tal, julga que conhece toda a gente.
         — Bom, não interessa — anuiu o comissário.
         Chico Morgas tornou a encher os copos dos homens e passou depois os dedos pelas pontas desgrenhadas do bigode. Olhou para Julião com um ar reprovador e pressentiu que as coisas não iriam acabar bem.
         — E você — inquiriu o comissário, voltando-se para o homem do bigode estranhamente delicado, — como se chama?
         Paco Ibañez estremeceu primeiro e só depois balbuciou qualquer coisa que ninguém compreendeu. O comissário tornou a insistir na mesma pergunta e então o homem dos olhos muito pretos disse com uma pronúncia estrangeira:
         — No comprendo.
         — E esta, hem? — Fez o comissário. — Um estranho e ainda por cima estrangeiro.
         Chico Morgas levou as mãos à cara numa atitude de desespero. O comissário voltou-se para ele e perguntou:
         — Não me andas a esconder nada, pois não?
         Chico Morgas fez um gesto significativo com a cabeça de que não e acrescentou de seguida a medo:
         — Eles estão aqui apenas de passagem, comissário.
         A voz dele tinha qualquer coisa de aflito e o comissário apercebeu-se disso mas não disse nada. Mordeu a cigarrilha com a mesma despreocupação de sempre e ficou absorto em silêncio, procurando descobrir algo para lá dos olhos muito pretos do estrangeiro.
         — Mais um pouco de vinho, comissário? — Perguntou Chico Morgas na tentativa de quebrar aquele silêncio.
         Lúcio Tavares fez um gesto de negação com a mão esquerda e acrescentou de imediato em forma de desculpa:
         — Obrigado, Chico, mas essa porcaria dá-me cabo do estômago.
         Logo depois virava de novo a atenção para os olhos muito pretos do estrangeiro. Havia qualquer coisa de inacabado no seu aspecto, mas era difícil dizer o quê: pensou numa doença ou num problema qualquer de inteligência. Pouco depois o estrangeiro dizia:
         — Qué pasa, hombre?
         O comissário Lúcio Tavares, que era homem de palavras bem medidas, recebeu aquela pergunta com um estremecimento. Era como se tivesse levado uma estalada na cara, pois tinha balbuciado qualquer coisa de repente sem compreender bem o quê.


24.

         Os raios derradeiros do sol tinham desaparecido quando o doutor Ramiro de Jesus saiu para a rua. Caminhou durante um bocado pelos arrabaldes da aldeia enquanto fumava um cigarro. Andou por ruas escuras que o levavam indiferentemente sempre aos mesmos sítios e, quando se sentiu aborrecido, resolveu voltar para trás.
         Acendeu outro cigarro e começou a pensar em Carminda. Mas logo depois ficou irritado consigo próprio e como não soube responder a isso achou melhor refugiar-se no silêncio.
         Momentos depois Ramiro de Jesus chegava a um jardim com arbustos muito verdes onde o edifício da igreja parecia tocar o céu. Algumas pessoas passavam por ali ao acaso enquanto outras conversavam sentadas nuns banquinhos também eles muito verdes que o padre António mandara ali pôr para os dias de maior calor.
         E foi nesse instante, naquele em que Ramiro de Jesus se preparava para continuar o seu caminho, que viu, não sem um estremecimento, os olhos pequeninos de Carminda fixos em si. Limpou os cantos da boca e esperou-a afastado da multidão. Com os olhos brilhantes, Carminda aproximou-se. Depois fixou nele os seus olhinhos inquisitórios e disse:
         — Olá, doutor.
         — Olá, Carminda.
         Houve um breve silêncio e o doutor Ramiro de Jesus sentiu-se ligeiramente embaraçado. O brilho do céu sem lua era vivo e trémulo. O doutor abriu os lábios para falar mas não chegou a dizer nada. Gostava muito de foder contigo, Carminda, pensou que podia dizê-lo assim, sem estremecimentos e sem embaraços, mas o coração sobressaltou-se-lhe. Disse então:
         — Gostava muito que ficássemos juntos esta noite, Carminda.
         O doutor olhou para ela como se esperasse uma confirmação, mas Carminda não se pronunciou.


25.

         O padre António tinha acabado de pôr as vestes litúrgicas quando um repentino torpor das pernas o obrigou a correr para a casa de banho. Sentou-   -se na retrete com uma aflição que lhe rebolava as tripas ao avesso e ficou a pensar nas palavras impiedosas que Genoveva das Dores lhe havia confiado.
         O padre António sabia que tinha de fugir daquele tormento sem provocar quezílias a ninguém mas não via como. Suspirou fundo quando acabou de cagar e benzeu-se mais vezes que o costume: aquele era um hábito que adquirira ainda na imaturidade da sua adolescência e que lhe dava — não sabia muito bem porquê — um certo conforto ao desassossego da alma.
         Depois levou uma mão cheia de água à cara e limpou-se a uma toalha branca com a sigla da igreja. Quando saiu da casa de banho, mais velho que nunca, a viúva Zulmira Pontes esperava-o na pequena sala da sacristia com um ar grave acentuado no olhar. O padre António endireitou a cabeça e perscrutou-lhe algo de mau naqueles olhos da cor da terra. Contestou:
         — Esperava ver-te só depois da missa.
         A viúva Zulmira Pontes endireitou-se no vestido comprido de alças largas e desviou uma madeixa dos olhos. Os seus gestos, rápidos e trémulos, mostravam um certo nervosismo. O padre António acalmou-a:
         — Não precisas de estar nesse estado, criatura, o que tens para me contar não deve ser mais desagradável do que aquilo que já me foi dito.
          O padre indicou-lhe uma cadeira e pediu que não retivesse mais aquela ansiedade e que contasse tudo. A viúva sentou-se com gestos atrapalhados e olhou depois para ele com um súbito fulgor de esperança no sorriso. Disse:
         — Acredito sinceramente que o senhor padre reconhecerá nas minhas palavras as razões óbvias que me levaram a cometer tal…
         O padre António interrompeu-a, furioso:
         — Assassínio, é isso que quer dizer, menina Zulmira, não é?
         — Por favor, padre.
         — Pronto, pronto — desculpou-se o padre.
         A viúva Zulmira Pontes tornou a endireitar-se no vestido comprido de alças largas e demoveu-se, por fim, de todo aquele hermetismo que a tornava mais rígida que uma pedra tumular e principiou a falar com toda a segurança que lhe era possível.
         Meses mais tarde, e já com os sentidos completamente alterados e com a memória bloqueada, o padre António apercebeu-se do momento em que ia morrer, mas não por uma necessidade fisiológica qualquer, mas sim por causa do horror que ainda mantinha na memória quando se comprometeu com Deus a guardar sigilo sobre o acto criminoso mais horrível de todos os tempo na povoação de Ribeira de Mansos.


26.

         Deolinda de Jesus acabava de acender um cigarro quando o sino da igreja bateu as dezanove horas. Tinha vestido um soutien em cetim e uns calções de cós alto e olhava com uma insistência nervosa uma fotografia que tinha entre as mãos.
         — Sónia… — murmurou.
         Depois apertou a fotografia contra o ventre liso e sentiu de novo o peso das lágrimas nos olhos e uma brisa inquietante a sufocar-lhe o coração. Guardou então a fotografia numa mala que estava sobre a cama e olhou para aquilo que tinha sido a sua vida durante tantos anos: uma vida cruenta, amordaçada a uma terreola de merda e despossuida de alegrias vivas e de qualquer fulgor apaixonado — os homens eram todos uns merdas e as mulheres mais bruxas que as próprias bruxas.
         Deolinda de Jesus pousou depois a mala no chão e olhou-se no espelho. Os olhos estavam inchados de dor e tinha umas olheiras violentamente carregadas que lhe davam um ar terrífico de sufoco.
         Quando assim se viu, Deolinda de Jesus não perdeu a compostura tremente como se esperava, como também não se deixou levar pelo desassossego galopante que lhe asfixiava todo o coração e a empurrava para um mistério de sombras. Quando assim se viu, Deolinda de Jesus sentiu no corpo uma amálgama de lentas explosões vitoriosas e, a partir desse instante, os mil movimentos informes que a tinham supliciado cristalizaram-se numa firme obsessão. Não teve imediatamente consciência disso, mas já estava rompida a barreira que havia isolado o seu ser do mundo todo-poderoso.
         Outras visões, ainda mais confusas, assaltaram-na igualmente, mas ninguém, nem mesmo Ramiro de Jesus, viria a notar o estado de auscultação fremente em que ela estava quando decidiu finalmente fugir daquele lugar maldito.


27.

         O comissário Lúcio Tavares mordeu a ponta da cigarrilha cubana com uma força desmedida e olhou para os olhos assustados do taberneiro. Aproximou as pupilas deste e perguntou-lhe, furioso:
         — Quem é este gajo, Chico?
         O taberneiro foi tomado por uma hesitação e manteve-se em silêncio. Silêncio esse que causou ao comissário a apreensão de um perigo indefinível. Contudo, voltou a inquirir:
         — Não me ouves, caralho? Quem é este gajo?
         Foi então a voz apelativa de Julião quem quebrou todo aquele constrangimento, desfazendo assim o silêncio de uma qualquer surpresa desagradável:
         — Não atormente mais o rapaz, comissário, os pobres coitados não se conhecem.
         Os olhos do comissário não se moveram. Continuavam fixos no taberneiro com uma insistência animal. Depois de recobrar os sentidos, olhou para o gordo e perguntou-lhe:
         — E tu? Serás tu capaz de me dizer quem é este gajo?
         — O Paco Ibañez é de boa estirpe, comissário — mentiu o homem. — Um pouco sonso, talvez, mas de bom coração, um camarada dos bons. Conhecemo-nos em Cáceres quando fui visitar uma prima minha. O Paço era o seu namorado.
         O comissário soltou uma nuvem gorda de fumo e encarou os olhos muito pequeninos de Julião. Havia qualquer coisa de escarninho naqueles olhos agitados.
         — E o que fazem por estas bandas, meus senhores?
         — Estamos apenas de passagem, comissário, aqui o rapaz — e olhou para o estrangeiro — não conhece nada de Portugal.
         — Hum… — Fez o comissário.
         — Não há azar nenhum, comissário — disse Julião, — somos todos bons rapazes.
         Fez-se, por momentos, um breve silêncio e até eles chegou um cântico entoado por muitas vozes. Os homens remexeram-se nas cadeiras incomodados e então Julião tornou a falar:
         — Porque não põe esses desatinos para trás das costas e bebe mais um pouco de vinho connosco, comissário?
         Lúcio Tavares, homem de regras e de palavras temperadas, tornou a exaltar-se:
         — Desatinos o caralho, ouviu?
         — Pronto, pronto, comissário — desculpou-se o gordo, — também não era razão para tanto.
         O comissário recostou-se para trás na cadeira e procurou uma resposta para todo aquele embaraço na aflição da memória. Contudo, não havia nada de tão expectante que tornasse a sua obsessão assim tão agonizante.
         — Vá lá, comissário — convidou o gordo, — beba mais um pouco de vinho.
         Lúcio Tavares fez um gesto de contrariedade com as mãos e disse:
         — Não, não, obrigado.
         E depois virando-se para o taberneiro:
         — E tu vê lá o que andas a fazer, Chico, não me queiras foder a vida, ouviste?
         E ainda para o homem dos olhos pequeninos, definitivo:
         — Resolva as coisas que tem a fazer e desapareça daqui sem discussões.
         Quando saiu, as nuvens que formavam uma silhueta de cartão sobre a taberna, estendiam-se numa sombra cinzenta e assustadora até muito para lá do monte da aldeia.


28.

         Carminda aproximou-se dele e disse em voz baixa:
         — Por que não diz antes que quer foder comigo, doutor?
         Os olhos de Ramiro de Jesus estremeceram perante aquelas palavras cheias de crueldade. Ele disse:
         — Por favor, Carminda, poupa-me a esse teu mau génio.
         — Porquê, doutor? Porquê todo esse sentimentalismo agora?
         — Não é uma questão de sentimentalismo. É antes…
         O doutor Ramiro de Jesus calou-se. Sentiu-se de novo ligeiramente embaraçado e com o coração aos sobressaltos. Continuou:
         — É que…
         — O quê, doutor?
         — Não digas nada, porra! — Interrompeu-a, furioso.
         Houve um breve silêncio e Carminda baixou o olhar. Disse:
         — Desculpe-me.
         — Não, Carminda, eu é que devo pedir-te desculpa.
         O doutor acendeu um cigarro e olhou os mendigos que enchiam as escadas da igreja numa atitude de velório, as crianças que corriam desabridas e cheias de uma impetuosa alegria no olhar e as velhas que se arrastavam numa solenidade de marcha a consumirem as pastilhas para a azia. Acabou o cigarro e olhou de novo para Carminda. O rosto, iluminado de solidão, tinha a persistência da luz de Agosto. Ela disse-lhe:
         — Sabe, doutor, se se quiser deitar comigo é só pedir.
         — Eu sei pequena, mas é que por vezes eu pergunto-me se não preciso de me ralar com tudo isto.
         — Já alguma vez lhe passou pela cabeça que se calhar é isto a vida?
         O doutor Ramiro de Jesus não disse nada. Quando estava aflito despertavam em si pensamentos de mau gosto que lhe tiravam as palavras da boca. Murmurou apenas:
         — Se tiveres razão naquilo que dizes, pequena, gostava muito de saber se isso é deveras bom ou mau.
         — Isso eu não sei, doutor, mas esta é a única ideia que me faz suportar toda esta merda.
         — De que foges, Carminda?
         — Qual é a sua ideia?
         — Não sei, mas tenho receio que escondas algo maior que aquilo que o teu coração possa suportar.
         — Não receie por mim, doutor, o meu coração suporta tudo.
         Para ficar de paz com a sua consciência, Ramiro de Jesus procurou confortá-la. Disse, num trejeito mais de amante do que de conselheiro, que não queria que ela se inquietasse desnecessariamente com as falhas dos humanos.
         — Procura viver, simplesmente — rematou.
         Sem saber que o tinha feito, Ramiro de Jesus havia esclarecido em Carminda o transtorno que permanentemente a inquietava desde o inicio dessa tarde. Sentindo-se segura, ela perguntou:
         — Acha possível que a minha avó tenha morto o meu pai?
         — Meu Deus, Carminda, mas que pergunta!
         — Mas o que acha disso? É assim tão absurdo?
         — Tenta compreender uma coisa, pequena: é verdade que a tua avó é uma pessoa de cataclismos vários, mas não acredito que tenha chegado ao ponto de provocar a morte a alguém. Por favor, Carminda!
         — É mesmo assim tão absurdo?
         — Acho que isso não passa apenas de uma insignificante cisma.
         — Tenho medo, doutor.
         — Não tenhas, eu estou aqui.
         — Gostava muito que dormisse comigo hoje, doutor.
         O doutor Ramiro de Jesus envolveu-a num abraço de gestos seguros e olhou à sua volta. As velhas haviam desaparecido do adro da igreja, assim como as crianças e os cadáveres dos pobres mendigos. Apenas alguns cães farejavam ainda as artérias vazias das ruas. O doutor Ramiro de Jesus tomou Carminda nos braços e desapareceram ambos no prolongamento de uma rua da qual provinha um cântico entoado por muitas vozes.


29.

         Genoveva das Dores estava a preparar uma cafeteira com água quente quando bateram à porta. Colocou depois dentro uma infusão de chá de erva-cidreira e arrastou-se com sofreguidão até à porta.
         — Ah, és tu — disse, quando o rosto da viúva Zulmira Pontes assomou à porta.
         Genoveva das Dores virou-lhe as costas com um ar de sofrimento nos olhos e antes de desaparecer na penumbra da cozinha, pediu:
         — Entra e fecha a porta.
         Zulmira Pontes entrou e seguiu os movimentos da velha até à cozinha. Um aroma adocicado a ervas pairava invisível na penumbra em insistências de varejeira.
         — Queres um chá? — Perguntou a velha.
         — Não, obrigado.
         Genoveva das Dores olhou-a demoradamente, como se tentasse recolher do coração as inquietações que pulsavam dentro dela. Depois inquiriu:
         — O que te inquieta, rapariga?
         — Tudo isto me inquieta.
         — O que está feito não se pode desfazer — contrariou a velha.
         — Não é isso, se fosse preciso matá-lo outra vez matava-o.
         — Então o que é?
         — É todo este secretismo que decidimos levar por diante.
         — É a melhor maneira de não irmos parar à cadeia.
         — Eu sei, mas…
         Genoveva das Dores encarou com firmeza a impaciência que trepidava nos olhos da mulher e disse com toda a energia:
         — Pensava que isso já estava bem entendido.
         A viúva Zulmira Pontes virou-lhe as costas e sentiu-se a lutar contra o desejo violento de desaparecer a galope. Contudo, perguntou:
         — E tu?
         — Eu o quê, rapariga?
         A viúva rodou nos calcanhares e enfrentou o par de olhos vazios da velha que, ocasionalmente, reparavam no perfil de uma pequena aranha no travessão do tecto. A mulher mastigou longamente a frase que tinha na cabeça e murmurou num suspiro complacente:
         — E tu, Genoveva?
         A velha desceu o olhar para o bico do decote do vestido comprido de alças largas da mulher e viu-lhe os seios estremecerem com violência. Depois sossegou-a. Disse:
         — Não te preocupes, se fosse preciso matá-lo outra vez matava-o.


30.

         Quando Clarisse apareceu o comissário Lúcio Tavares lançava no ar os sinais de fumo de uma cigarrilha nervosa. Tinha as costas ligeiramente curvadas para a frente e abanava a pequena cabeça felpuda num galope epiléptico de ansiedade.
         — Bem-vindo à minha casa, comissário — disse ela tocando-lhe com inesperada delicadeza no ombro. E depois para alguém que fazia barulho na cozinha:
         — Um licor para o comissário, Isabel.
         E de novo para o comissário:
         — Bebes um licorzinho primeiro, não bebes, meu gigantinho?
         O comissário não respondeu. Tinha os olhos paralisados numa angústia inanimada e, mais acima, um sulco profundo na testa.
         — Meu Deus, mas que raio tens tu? — Arreliou-se Clarisse.
         — Não sei — respondeu o comissário.
         — Ah, sempre consegues falar!
         — Quando eu o não conseguir fazer mais prefiro que me matem.
         — Oh — disse ela, carinhosa — o meu gigantinho é forte demais para morrer.
         O comissário ergueu as pestanas e, franzindo o sobrolho esquerdo, inquiriu com forte autoritarismo:
         — Achas mesmo?
         Clarisse soltou uma gargalhada alegre e exultou-o ainda mais:
         — Porque não te chegas mais, gigantinho, tenho comichões na minha rata.
         — Não tenho tempo — objectou ele.
         — Mas que raio se passa contigo, homem?
         — Não se passa nada.
         — O caralho é que não se passa nada!
         — Pronto — reagiu o comissário, — já chega de ralação.
         — Não se passa mesmo nada?
         — Não, não se passa nada.
         O comissário chegou-se mais a ela e revelou-lhe então aquilo que era o esqueleto de um sorriso amistoso e interesseiro:
         — Achas que posso passar por cá mais tarde?
         Nesse momento entrou na sala uma criada imaculadamente vestida de branco com uma bandeja de prata nas mãos. Depositou o copo com um licor azulado sobre uma mesinha de madeira e desapareceu de imediato num rodopio elástico de ancas. O comissário acompanhava interessadíssimo cena com os olhos inteiramente embriagados de força. Pouco depois perguntava:
         — Achas que ela não é boa demais para se perder na cozinha? — E soltou uma gargalhada corrosiva e de mau gosto.
         Seguiu-se depois um curto silêncio que o comissário aproveitou para apagar a sua cigarrilha e molhar os lábios no licor. A menina Clarisse sugeriu-  -lhe baixinho:
         — E se fossemos para a cama mesmo agora?
         — Agora não posso.
         — Está bem — anuiu ela, — faz como quiseres.
         O comissário deu-lhe um beijo na cara meio às pressas e desapareceu logo depois com aqueles mesmos olhos paralisados com que Clarisse o vira chegar.


31.

         — Amava-lo?
         — Quem? O meu marido?
         — Sim — respondeu Genoveva das Dores.
         — Como nunca tinha amado ninguém.
         — Ah, és uma romântica, rapariga — comentou a velha, — e o doutor Ramiro de Jesus? O que significa esse homem para ti?
         — Ele não significa nada para mim.
         Genoveva das Dores acabou de beber o chá e disfarçadamente olhou o relógio de pulso da mulher. Depois disse:
         — É bonito.
         — O quê?
         — O teu relógio.
         Zulmira Pontes manteve-se calada algum tempo. Depois segredou-lhe:
         — Era do meu marido.
         — E ele amava-te?
         — Acho que sim — disse, encolhendo os ombros.
         — Bom — disse a velha num bocejo, — o melhor agora é ires para casa e tentares descansar o melhor possível.
         — Genoveva?
         — Sim?
         A rapariga ensaiou primeiro um sorriso para disfarçar a agitação que lhe ia no coração e só depois perguntou:
         — Achas que vai ficar tudo bem?
         Genoveva das Dores ficou a contemplar orgulhosamente o rosto de Zulmira Pontes. Sentia uma imensa ternura por aquela rapariga de seios firmes e de lábios cheios, mas, contudo, não sabia explicar o porquê de toda aquela sua afeição. Disse-lhe apenas:
         Se eu tivesse a tua idade, rapariga, saberia de certeza que tudo iria ficar bem.


32.

         Começara a chover e com o barulho das bátegas na chapa do telhado mal se ouvia as vozes dos homens na taberna. Chico Morgas foi buscar uma garrafa de ginja e serviu-se de um golo sôfrego. O calor adocicado que lhe desceu até às tripas deu-lhe um novo ânimo. Olhou depois para Julião e riu-se, mas o homem dos olhos muito pequeninos não lhe saudou o humor. Disse-lhe apenas:
          — Estivemos por uma unha de sermos apanhados e tu ainda te pões com essas imbecilidades de atrasado mental, és mesmo um idiota, Chico, sabias isso?
         — A culpa é toda tua — ripostou o taberneiro.
         — Aconteceu algo de que não estávamos à espera — volveu o outro, — não consegues entender isso, caralho?
         — Os teus problemas não me interessam para nada. Tínhamos feito um trato e tu não soubeste respeitar isso.
         — Respeito? Mas que entendes tu disso?
         Chico Morgas ficou a observá-lo, em silêncio, como alguém que contempla a atenção que conseguiu despertar. Depois, com lentidão sacerdotal, levantou-se, foi até ao balcão e acendeu um cigarro. O outro, baixando a voz, murmurou:
         — Não penses que eu não compreendo a tua teimosia, Chico, fica certo de que a compreendo e até muito bem. Quero, ao menos, que compreendas isso, está bem? Não fiques assim tão irritado, caramba, nós estamos aqui apenas para conversar, estamos entendidos? Vá, senta-te aqui ao pé de nós e bebe mais um pouco de ginja.
         Chico Morgas era um homem que não inspirava temor, nem tão-pouco tinha ideias lúgubres, mas, no entanto, era pouco diferente dos seus concidadãos. Estava na flor da idade, perto dos cinquenta, e os seus sinais particulares — fronte larga, nariz aquilino e um bigode de pontas desgrenhadas — podiam ter feito dele um verdadeiro encantador de corações se se tivesse interessado pelas mulheres.
         — Bom — fez o homem, — agora deixa-te de merdas e passa para cá a espingarda.
         Antes de se sentar Chico Morgas tornou a emborcar mais um pouco de ginja. Os seus olhos tomaram uma expressão de eminente irritabilidade. O outro, ao tomar consciência daquela mudança no olhar do taberneiro, disse, tentando serenar as coisas:
         — Passa-se alguma coisa estranha, Chico?
         — Hã? — Murmurou Chico Morgas.
         O taberneiro não estava a perceber nada da conversa do Julião quando este lhe perguntou com um certo divertimento:
         — São as mulheres que te preocupam? É isso?
         O que têm as mulheres?
         — Não te preocupes com isso, caralho, se estás com problemas com elas nós tratamos do assunto, somos homens bem capazes para isso.
         Chico Morgas passou com as mãos pelo amontoado de cabelos grisalhos e assomou, de novo, um visível olhar de desrespeito quando tornou a murmurar:
         — Hã?
         Julião começava a impacientar-se. Olhou para Paço Ibañez e fez-lhe um movimento de cumplicidade com as pálpebras. O estrangeiro, contudo, não se mexeu. Julião esticou a cabeça em direcção dos olhos do taberneiro e encheu o copo de ginja. Depois sorveu um golo pequeno e aconselhou-o:
         — Gostas disto, não gostas? — E apontou para a garrafa de ginja. — Continuas a fazer essa figura de parvo e deixas de receber esta merda. Estás a ouvir-me?
         — Tínhamos combinado só apareceres amanhã, porra!
         Chico Morgas queria dizer mais qualquer coisa, mas a palma da mão do estrangeiro cortara-lhe a respiração. Ele sentira a estalada como um golpe inesperadamente frio.


33.

         — Que casa é esta, doutor?
         Ramiro de Jesus acendeu um cigarro e o seu rosto foi toldado pelo fantasma da nostalgia. Passou um braço pelos ombros de Carminda e sentiu-lhe aquele cheiro característico de quem ainda é ingénuo. Mas Carminda já o não era, e isso Ramiro de Jesus sabia-o muito bem. Contudo, era uma qualidade que ele apreciava nela, embora sempre com alguma inquietude.
         — Foi aqui que passei praticamente toda a minha infância.
         Carminda tinha os olhos fechados. O barulho da chuva dava-lhe alguma serenidade quando se punha a pensar nas coisas sérias. Era a certeza de que havia alguém mais acima dela; alguém que controlava a vida e as consequências das catástrofes.
         — Diga-me como é o mundo lá fora, doutor — pediu Carminda.
         Ramiro de Jesus sorveu avidamente a ponta do cigarro antes de falar:
         — Não conheço assim muito bem as coisas para te falar delas, Carminda.
         — Mentira — reagiu ela, corrigindo-o de imediato: — Conheces Lisboa e é disso que quero ouvir falar.
         — O que lembro de Lisboa com mais saudade são as casas de putas — disse ele com entusiasmo.
         Carminda tinha acabado de abrir os olhos e não ouvia mais nada senão a cadência monótona da chuva e a respiração entrecortada do seu coração. Tinham acabado de fazer amor e o ar no quarto estava demasiadamente quente.
         — As casas de putas? — Observou ela pouco depois.
         — Sim — sorriu ele, — as casas de putas.
         — E porquê as casas de putas?
         — Porque é daquilo que me recordo melhor. A minha vida em Lisboa foi uma passagem pelo Carnaval da boémia. A agitação da noite era uma coisa efervescente. Se o meu pai me tivesse visto nessa altura havia de ter sido bonito.
         O doutor Ramiro de Jesus parou de falar e fechou os olhos por uns momentos. A agitação da chuva aumentara e pela janela espreitavam as ramadas frondosas das árvores da praça. De vez em quando alguns trovões estoiravam no céu toda uma pujança invejável de gritos. Carminda teve um arrepio e anichou-se de encontro ao homem deitado a seu lado. Pouco depois perguntava-lhe:
         — É verdade que costumas dormir com a viúva Zulmira Pontes?
         O doutor ergueu a cabeça e apontou-lhe uns olhos cheios de interrogações. Não é que tivesse ficado impressionado com o descaramento da rapariga, pois era já normal aqueles seus repentinos, mas sim por causa do embaraço que aquela observação lhe havia causado.
         — Tens de compreender uma coisa, Carminda — disse ele, — por vezes um homem tem esta necessidade barbara de estar com outras mulheres. Faz parte da idiossincrasia dele.
         Idiossincrasia era uma palavra que Carminda não conhecia, tão-pouco a ouvira sequer antes. Mas como as palavras complicadas não lhe interessavam minimamente para nada, ela acabou por esquecê-la pouco tempo depois.
         — Tu sabes que eu nunca quis que cultivássemos qualquer espécie de ilusões a nosso respeito, sabes isso, não sabes, Carminda? — Disse ele, procurando sossegar as coisas.
         Carminda acenou com a cabeça e esperou.
         — Esta situação é muito normal, Carminda — prosseguiu ele, quase sem alento, — faz parte de todo um jogo de solidariedade que as pessoas tentam tornar relativamente suportável, graças a essa compostura da metade animal que domina o nosso cérebro.
         Carminda não compreendia nada daquilo que o doutor lhe ensinava, ou melhor, tentava ensinar. Ela simplesmente encolheu os ombros e manteve aquele mesmo brilho de curiosidade no olhar que lhe era característico quando ele lhe perguntou:
         — Estás a perceber, não é verdade?
         Nesse momento, uma rajada forte embateu contra a vidraça da janela. Carminda sobressaltou-se.
         — De qualquer modo — continuou ele, — não nos devemos deixar estimular pela imaginação das pessoas.
         Sorrindo para dentro, Carminda não foi capaz de deixar de inquirir:
         — Mais tarde ou mais cedo vai acabar por me esquecer, não é assim, doutor?
         — Tu nunca serás indiferente para mim, pequena, nunca esqueças isso.
         Apesar dos seus prognósticos, Carminda tinha dificuldade em aceitar com tranquilidade todas aquelas palavras.


34.

         As ruas estavam vazias e uma chuva mansa empapava em silêncio as roupas de Deolinda de Jesus. As suas lágrimas, pois ela chorava amargamente, confundiam-se com a viscosidade morna da chuva.
         Deolinda de Jesus andava de uma maneira picarescamente ébria, uma vez que a tortuosidade do caminho e o peso substancial da mala que trazia, dificultavam-lhe os gestos. Tinha avançado uns duzentos metros para lá do limítrofe da aldeia e parou num sítio seco, debaixo de um alpendre abandonado. Enxugou depois os olhos e olhou em volta: apenas sombras disformes e, ao longe, como luzes de fósforo, os candeeiros da aldeia.
         Foi nesse momento que ela verificou, com desagrado, que tinha o peito demasiado oprimido. Quando começou a desabotoar-se, para aliviar um pouco a pressão e a intensidade do calor, ouviu uma voz atrás de si:
         — Que mundo este, minha pomba branca.
         Ela teve um ligeiro sobressalto, depois, com ar resignado, voltou-se e encontrou-o com uns olhos muito assustados. Respondeu-lhe:
         — É mesmo.
         Passou um carro e o barulho não os deixou falar. Xavier pôs-se ao lado dela. Cruzou os braços e acendeu um cigarro. Depois abanou a cabeça com ar desgostoso e acrescentou em voz baixa:
         — Isto é o fim.
         — Não, antes pelo contrário — interpelou-o Deolinda, — isto é o princípio.
         Xavier olhou para ela, directamente. Os seus olhos escuros pareciam mais sobressaídos que nunca.
         — Vais-te embora?
         — Sim, seu pulha — gritou-lhe ela.
         Ele esforçou-se por sorrir. Pensou depois que podia ajudar e fez-lhe ver que falava verdade:
         — Posso levar-te até à estação, se quiseres.
         — Isso era bom — disse ela, hesitante.
         Xavier baixou a cabeça e, aproximando-se mais dela, acrescentou com um sorriso cúmplice:
         — Não quero que fiques com má impressão de mim, por favor.



35.

         — Não tenhas receio, Paço — gritava o homem da cicatriz, — o barulho da chuva abafa os gritos.
         O estrangeiro virou o corpo do taberneiro ao contrário e pontapeou-o no estômago.
         — Así es mejor — disse.
         Julião Olhou o corpo do taberneiro, jazendo à sua frente numa poça de sangue. Tinha os olhos revirados e os cantos da boca completamente rasgados. Respirava com dificuldade.
         — Estás a ver o que foste arranjar, canalha? — Disse Julião, sentando-   -se.
         — Hijo de puta — gritou Paco.
         — O que achas deste gajo, Chico? — Disse Julião, olhando para Paço Ibañez. — Um profissional, hã?
         E depois olhando ferozmente para o taberneiro:
         — Agora diz-me, Chico, onde está a porra da espingarda.
         O taberneiro soluçou violentamente, cuspiu uma pasta espessa de sangue e esboçou um sorriso de misericórdia. O outro, pousando uma mão apaziguadora por um instante no ombro de Chico Morgas, perguntou:
         — Onde é que tu queres chegar, homem?
         O taberneiro não respondeu. A chuva batia agora violentamente na chapa do telhado. Julião olhou depois para Paco e pediu-lhe, em castelhano, que fechasse as portas da taberna, não fosse algum mau agoiro entrar por ali adentro. O estrangeiro, levantando, furioso, os olhos, assim fez. Depois Julião tornou a insistir:
         — Onde é que tu queres chegar, caralho?
         Julião não ouviu nenhuma resposta. Chico Morgas limitava-se a olhar nervosamente por cima do ombro.
         — Olha que não vamos ficar por aqui — ameaçou-o Julião, — estás a ouvir?
         Julião cruzou os braços numa atitude de quem não tem pressa e está pronto a aguentar toda uma série de horrores. Depois, inclinando-se para a frente, disse, sentenciando-o:
         Ou falas ou morres.
         Paco Ibañez tinha chegado nesse momento ao pé deles. Julião informou-o:
         — O porco quer morrer.
         O estrangeiro não respondeu. Limitou-se a esfregar as mãos com desejos de carnificina para, logo depois, desferir um pontapé a poucos centímetros da boca de Chico Morgas. Sem querer desatou a rir. Voltou-se e olhou para Julião que o repreendia com um olhar levemente chocado.


36.

         Tinham chegado à estação quando uma violenta bátega afundara, por breves instantes, a terra num dilúvio. Deolinda de Jesus consultava o relógio de pulso no momento exacto em que ouviu um murmúrio atrás de si: Xavier esperava-a, ansioso, por lhe tomar a mão e a ajudar a subir para a carruagem.
         Ela abanou a cabeça, acariciou depois os cabelos e, para lhe dar tempo a acalmar-se, submeteu-o a algumas perguntas banais. Ele respondia-lhe com uma certa hesitação na voz, aclarando de vez em quando o fio das ideias. Depois acrescentou:
         — Parece mentira aquilo que estás a fazer, Deolinda.
         Durante aquele momento que se seguiu, uma voz roufenha soou dos altifalantes espalhados pelos cantos da estação, e anunciou o atraso do comboio para Lisboa. Deolinda de Jesus pousou a mala junto aos pés e acendeu um cigarro. Depois tornou a passar as mãos pelos cabelos e suspirou profundamente. Os seios cresceram, caprichosos e brilhantes de uma vulnerável afeição. Xavier, apercebendo-se disso, balbuciou sonhador:
         — Não é possível que não possamos voltar costas ao que sucedeu.
         A inquietação que lhe trepava pelas paredes do coração foi, nesse momento, dilacerada com a voz bruscamente cortante de Deolinda:
         — Ainda não perdeste a mania de me quereres foder, canalha?
         A resposta de Xavier, que olhava fixamente os seios túrgidos da mulher, foi lenta, rouca e quase inaudível:
         — Desculpa, não queria ser incorrecto.
         Mas logo depois Deolinda acrescentou:
         — Não percebes que não é só por causa de ti que me vou embora?
         Xavier queria responder com clarividência, queria ser menos misterioso nas suas respostas, mas a língua enredava-se-lhe com facilidade e isso punha-o nervoso, inquieto e sem entender nada do que dizia.
         Deolinda de Jesus abriu os braços como se procurasse mostrar, a ele, toda a pujança que o seu corpo ainda tinha para dar e que ele, de rosto enrugado e de olhos injectados de recordações, tinha pura e simplesmente deitado fora.
         — Como vês estou mais saudável que tu — disse ela, num arremate de gozo.
         Xavier, em contrapartida, roía-se de estupidez, que não tivesse continuado com aquela relação fraudulenta que tanto tinha perseguido. Mas o orgulho recalcado ocultaria para sempre a Deolinda de Jesus a vontade que o inquietava nesse momento.
         Contudo, não fora só essa indiscernível prova de estupidez que os afastara para sempre, pois a verdade é que a palavra de Deolinda de Jesus falava mais alto e ela tinha motivações suficientes para esquecer todo aquele passado.
         Pouco depois, o comboio em direcção a Lisboa chegara à pequena povoação de Vale de Mortos, com um pequeno atraso de dez minutos devido à violenta bátega que afundara, por breves instantes, a terra num dilúvio.


37.

         O comissário Lúcio Tavares foi encontrar o padre António a circular à deriva pela aldeia, sem peso, subindo e descendo as ruas com uma alucinação estampada no olhar. Quando passou pelo comissário a sua reacção enérgica:
         — É terrível!
         O comissário, homem corpulento e de gestos lentos, barrou-lhe o caminho com o pretexto de averiguar o que ele queria dizer com aquilo de «é terrível!».
         — O que se passa consigo, padre?
         A corola da cabeça do padre brilhava com intensidade e os olhos, surpreendidos, tinham chispa. Começou a ziguezaguear como um louco à volta do comissário e a gritar em voz alta determinadas liberdades pouco próprias para uma entidade como a dele. O comissário, agarrando-o pelas abas da sotaina e atraindo-o para si, advertiu-o com uma certa surpresa tempestiva:
         — Mas que raio, padre, se não se acalma fecho-o no calabouço!
         A chuva caía agora em quantidades melodramáticas e, a pouco e pouco, ia-os humedecendo terrivelmente. Dava a impressão que o céu podia, a qualquer momento, desabar sobre a terra, tal a impetuosidade do dilúvio.
         — É o fim do mundo — gritava o padre António, — a morte persegue-     -nos.
         O comissário tornou a insistir para que o padre se acalmasse e convidou-o depois a acompanhá-lo até à esquadra onde poderiam conversar mais à vontade, longe daquela chuva maldita e de outra calamidade qualquer. A sua primeira reacção foi enérgica, respondendo, furioso, que nenhum homem com a palavra de Deus o podia obrigar a nada, muito menos um miserável agente da lei.
         Depois, compreendendo a atemorizada zanga estampada no rosto do comissário, o padre António atribuiu a este as respectivas desculpas da sua destrambelhada aflição. Escusou-se então com algumas repetidas reverências, tendo depois desaparecido tão rapidamente no meio da tempestade que o comissário Lúcio Tavares nem deu por nada.
         No entanto, aquele estrondo violento que se fez ouvir e que, pouco depois ainda vagueava pela aldeia e pelos seus ouvidos, deixou-o completamente apreendido. Era um zumbido exasperante que continuou mesmo assim e, muito depois de se ter silenciado de vez, a dar cabo da cabeça do comissário.
         Para o comissário não havia duvidas: era o tiro de uma caçadeira. Não havia, contudo, maneira de ele saber o calibre da espingarda, pois o barulho da chuva adulterava-o. Franziu o sobrolho esquerdo quando se apercebeu que o tiro tinha vindo da taberna do Chico Morgas.



38.

         Em sonhos, Carminda descobria-se de tronco nu e de tal forma tão dura, que os seus seios ameaçavam rachar a qualquer instante. Mas, naquele momento, ela estava a flutuar ao sabor da água numa ilha no meio do Atlântico de que não sabia o nome. Sentia frio e batia os dentes, mas os seios, esses continuavam duros como dois pedaços intocáveis de mármore branco.
         Por vezes, nesses sonhos, onde a fantasia enchi-a de coisas vivas e onde os seus olhos inquietos, pequeninos, se abriam, refulgentes, Carminda conseguia sentir varias mãos ameaçando-a com volúpias irresistíveis. E ela pensava, de lábios levemente afastados, como se experimentasse beijar o ar, que aquelas mãos a rodeá-la-iam e far-lhe-iam estremecer o corpo quando atingissem as partes mais íntimas, as partes onde era quase intraduzível a sensação de bem-estar. Às vezes, ouvia-se a dizer: «Come-me, tens de me comer».
         Quando acordou, Carminda sentia-se ressuscitar, ou pelo menos, foi assim que lhe pareceu. Depois enterrou as mãos na cova que o colchão fazia a seu lado e apagou-se-lhe a luz por causa da modorra que sentiu. Era uma cova morna onde ela quase distinguia o corpo instável do doutor Ramiro de Jesus.
         Tornou a abrir os olhos e chegou a pensar que já era de manhã. A luz inquieta de uma lamparina ardia convulsivamente aos pés da cama. A chuva, pareceu-lhe, tinha subitamente tomado a forma da raiva de Deus. Esfregou a cara com as mãos ainda húmidas do esperma e levantou-se, um pouco aturdida.
         Chegou-se depois à janela e um arrepio percorreu-lhe o corpo franzino: as ramadas frondosas das árvores da praça haviam caído e esborrachado carros, casas e pessoas: algumas ainda gritavam o desassossego que lhes preenchia a alma.


39.

         Subitamente, o taberneiro começou a sangrar da barriga. Tinha um buraco muito feio entre as mãos que seguravam, a custo, as vísceras que refulgiam.
         Julião segurava a espingarda com uma energia furiosa. O cano da arma ainda fumegava quando falou:
         — Era isto que querias, filho da puta?
         Chico Morgas não conseguia falar. As tripas não lhe davam sossego e ameaçavam sair a todo o instante. As mãos, fétidas, procuravam esconder o buraco que lhe espichava sangue.
         — Agora nunca mais hás-de mexer esse cu, sacana — exultou-o Julião.
         E foi nesse momento que Chico Morgas compreendeu, chorando, que era um homem sem tripas nem coração. E então teve raiva mas não teve forças para a exprimir. Uma coisa sabia de facto: todos os diabos sairiam para o bosque para dançarem com ele.


40.

         No principio, dizia Clarisse ao doutor Ramiro de Jesus quando este, ansioso, lhe tocava as pernas nuas com as pontas dos dedos, os homens eram seres raivosos e que procuravam as mulheres com a única certeza que o gozo era o que elas gostavam de arrancar aos seus machos.
         — E hoje em dia como é, lindeza? — Brincou o doutor, beijando-a na curvatura da perna com a língua húmida.
         — Hoje os homens são mais sensíveis — continuou ela, — procuram as mulheres não só para as comerem, mas também para se sentirem mais seguros, mais humanos.
         — E achas que isso se encaixa a todos os homens?
         — Claro que não, tonto — respondeu ela, subitamente séria.
         O doutor Ramiro de Jesus soltou uma gargalhada e lançou-lhe um olhar cobiçado. Clarisse, entretanto, confidenciou em voz baixa:
         — Eu não posso ir para a cama com os clientes.
         — Merda mais o comissário!
         E depois, sem dar grande importância ao facto, ela acrescentou:
         — Olha por falar nele, ainda à pouco aqui esteve e saiu a correr que nem um desalmado. Tinha um olhar estranho, demoníaco, pareceu-me.
         O doutor Ramiro de Jesus ergueu-se num salto, ajeitou as roupas desalinhadas e beijando apressadamente as mãos da mulher, despediu-se, dizendo:
         — O comissário, preciso falar-lhe.
         Quando ficou só, Clarisse não era mais que um coração solitário. Mas o que mais a impressionava era aquele hábito atroz de pensar nos homens como objectos de conforto. Clarisse não fazia amor com os clientes, excepto com o comissário, o seu protector, porque e, muito simplesmente, os odiava. Era o amor-próprio que jazia adormecido debaixo da pele, encaixilhado num impressionante circo de feras que a reprimia desconsoladamente.
         Nestas alturas, quando do fundo da alma, arrancava as entranhas dessa raiva escavada dentro de si, ela costumava pensar na melodiosa poção que a sua amante, a criada Isabel, todos os dias despejava no seu coração: bastava o veneno inconfundível dos seus lábios mais o toque liquido das suas mãos dentro de si, para lhe sair pelo corpo, em jorros de sangue, todas as suas amarguras e angustias.


41.

         A carnificina que foi encontrar dentro da taberna de Chico Morgas, deixou ao comissário um sério deleite por vingança. O corpo do taberneiro estava estendido no chão e embebido numa espumazinha liquescente de sangue. Do buraco da barriga, gritando, raivosas, as tripas pareciam embriões fuliginosos.
         Na viagem de regresso à esquadra, com o cadáver do taberneiro nos braços e tropeçando nos bocados de tripas que ia deixando para trás, o comissário Lúcio Tavares, que conservava ainda aquele ar de proclamada vingança no olhar, não conseguia deixar de pensar no vazio que tudo aquilo lhe provocava.
         Quando chegou à esquadra, depositou o corpo no chão da cela vazia e preparou uma infusão de tabaco em vez da sua habitual cigarrilha cubana. Começou depois a mexer nuns papeis que tinha sobre a secretária, olhando de soslaio e, de vez em quando, o cadáver vermelho de Chico Morgas estendido no chão.
         Por fim, e farto de procurar uns documentos que não encontrava, deu-se conta de que falava com o morto:
         — O que fizeram de ti, pobre diabo.
         Pouco depois o doutor Ramiro de Jesus entrava na esquadra, cansado e a pingar água da tempestade. Ao ver a confusão de tripas e de sangue no chão sentiu grandes nuvens de mosquitos picarem-lhe a carne e só conseguiu deixar escapar uma dessas frases pouco comuns do seu vocabulário:
         — Meu Deus!
         O comissário recostou-se na sua cadeira rotativa de carvalho, entrelaçou as mãos atrás da cabeça e murmurou, ausente:
         — Proteger-te-ás dos demónios se a Deus te encaminhares.
         O doutor não fez qualquer comentário. Obviamente era uma máxima que ele, herege como se dizia, não conseguiu compreender. O comissário, por sua vez, e sem tirar os olhos do cadáver, perguntou:
         — Tem alguma coisa importante a dizer-me, doutor?
         — Na verdade, comissário — começou ele, — tenho algo que talvez lhe deva interessar bastante, mas se acha que vim em má altura posso sempre voltar noutra.
         — Não — respondeu o comissário, — continue, por favor.
         O doutor, inflexível, começara o seu relato, sem interrupção. Contara, com todos os pormenores e com um tom de falsete que às vezes lhe escapava, tudo o que Carminda lhe confessara nessa mesma noite. O comissário não se inquietou quando, no meio de tanta explicação e enredo pela imaginação do doutor, compreendeu que o nome de Genoveva das Dores era implicitamente dado como uma presumível hipótese de ter acometido contra Belmiro Azedo das Flores o seu assassinato.
         — Tanto melhor se assim é — suspirou o comissário. — E agora, doutor, se não se importa deixe-me sozinho. Não queiramos ofender os escrúpulos do morto com as nossas avenças, pois não?
         Ramiro de Jesus saiu da esquadra com a sensação de que a sua cabeça não era a mesma. Tinha os pensamentos tão dormentes, e tantas dores no corpo, que teve de fazer um esforço tremendo para não cair.


42.

         As raparigas, ao que lhe parecia, é que eram todas bastante agradáveis e prometiam, com os seus corações transbordantes de vinho e alegria, quererem vender tudo ao preço que ele quisesse.
         Nessa altura e quando a sua escolha recaía numa rapariga brasileira de olhos largos e lábios energicamente amadurecidos, entrou na sala a menina Clarisse. Trazia um vestido branco, curtíssimo, que lhe encolhia as ancas e fazia sobressair, do bico do decote, o magnifico contorno níveo dos seios.
         O doutor Ramiro de Jesus era, por enquanto, o único homem na casa e foi a ele que ela falou:
         — Já de volta, doutor?
         — Bem — tartamudeou ele, — é que não consigo afastar-me deste local por muito tempo.
         As outras raparigas soltaram risadinhas sem provocar escândalo algum, mas, no entanto, o doutor deixou a descoberto um certo brilho de curiosidade nos seus olhos pretos. Havia uma mulata muito bela que o espreitava indecentemente.
         — Não sabia que gostava de mulheres de cor — continuou ela, — a Soraya é uma mulata da cor das brasas e sabe bem o que faz.
         No momento seguinte, quando a rapariga presenteou-o com um beijo na face, outros homens começaram a chegar. O doutor conhecia alguns embora os rostos de outros não lhe fossem muito familiares.
         Mesmo assim, e antes de subir as escadas e esquecer que era casado com uma mulher que vegetava em insónias intensamente quentes e que ele desprezava sem rancor algum e dar uma foda naquela putazinha que ardia fosforescências debaixo de uma pele escura de baiana, o doutor Ramiro de Jesus não foi capaz de deixar de fixar uma ultima vez o rosto dessa mesma mulher que lhe tinha causado alguma curiosidade de macho e que lhe estava proibida por uma força maior.
         Foi, no entanto, a mulata Soraya quem o retirou daquele mutismo, a principio excitante mas que depois começara a tornar-se enervante. Ela entreabriu os lábios magnificamente desenvolvidos e duros e deixou escapar então uma súplica num tom quente e levemente afervorado:
         — Anda, querido, não me queiras fazer perder a tusa toda.
         O doutor Ramiro de Jesus comeu-a, por instantes, com um olhar reprovador, mas já os seus lábios se abriam de exaltação quando ela lhe exibiu, numa amálgama de petulância e pompa, as coxas e os seios insuflados de intermináveis desejos.


43.

         — Comissário — chamou o guarda Castro.
         A principio o comissário não disse nada, mas depois afastou os lábios que completavam uma linha hermeticamente pronunciada e falou:
         — O morto deixa-o estar, a esse o padre António já não pode fazer nada. Está louco.
         O guarda Castro decidiu mesmo assim fazer uma pergunta, e embora não sabendo se era indiscreta ou não, tinha a certeza que era inteiramente providencial:
         — E os colhões, comissário, deixaram-nos inteiros?
         O que o comissário Lúcio Tavares descobriu nessa altura foi que estava rodeado por canalhas da pior espécie e por imponderáveis frustrações de uma árdua vida de exageros de canções populares incomunicáveis e de uma puta de radionovelas subdesenvolvidas que a única coisa que sabiam fazer era foder a cabeça aos pobres e comer-lhes o pouco dinheiro que tinham com todo o género de barbaridades.


44.

         Quando Carminda chegou a casa a tempestade tinha devastado a maior parte das árvores de Ribeira de Mansos e levantado alguns telhados de casebres de pedra.
         Genoveva das Dores aguardava-a, sentada na cozinha, com uma chávena de chá de erva-cidreira nas mãos. Estava com um ar abatido e parecia ter envelhecido profundamente. Carminda notou-lhe essa instabilidade surda que a ensombrava e murmurou baixinho:
         — Pareces tão alterada, avozinha.
         Mas ela não a ouviu. Tinha as pálpebras dobradas sobre os olhos e os pés cruzados como se no seu subconsciente, nas raízes do seu modo de ser, dormisse um sono inquestionável de criança.
         — Como estás velha… — continuou ela em voz baixa.
         Depois, sentindo um excepcional amor por aquela mulher frívola e de preconceitos martirizados, tirou-lhe a chávena fria das mãos e cobriu-a com uma manta de retalhos azuis e amarelos. E depois acrescentou, tentando abstrair-se com uma impetuosidade provocativa que, pouco ou nada, lhe soou como pretendia:
         — Não quero que fiques muito mais tempo aqui feito uma boneca a quem tiraram os olhos e a fala, está bem? É melhor ires dormir.
         Mas uma vez mais a mulher não a ouviu. Carminda não se importou. Beijou-a suavemente na testa e tocou-lhe nas mãos que pareciam inanimadas e sem sangue.


45.

         Na manhã seguinte tudo tornar-se-á mais rico, pensava Deolinda de Jesus enquanto as mãos faziam viagens em volta dos retratos da sua filha. Sónia Maria era uma menina de faces rosadas e uns profundos olhos de água. Tinha uns caracóis pretos que caíam como cascatas sobre os ombros e um sorriso viscoso e era também um pouco temperamental.
         Na manhã seguinte tudo será diferente, pensava ela como se tivesse a certeza que aquelas lembranças, cristalizadas em anos da cor das brasas, fossem arrastadas do seu consciente sem qualquer mazela.
         Vou comprar roupas novas e usar saias curtas e dormir nua, pensava ela com o coração completamente atolado de ansiedade. Teremos conversas longas debaixo de mosquiteiros e iremos ficar a ver a chuva cair das folhas das árvores, continuava ela escrupulosamente a meditar um fio condutor de pensamentos positivos.
         Deolinda de Jesus era uma mulher praticamente amazónica, de seios amolecidos — é certo — mas os mamilos mantinham ainda a consistência da juventude e as pernas eram cheias de um voltejar de diálogos intermináveis que, à revelia com a robustez delicada dos olhos marcadamente iluminados, não a mantinham nunca longe de olhares indiscretos.
         E enquanto ela ia pensando nos meandros do espírito, procurando desenraizar-se da vida quotidiana de Ribeira de Mansos, o comboio atravessava vales e planícies, debaixo de uma chuva intimidante e quase impenetrável. Foi durante esses momentos que Deolinda de Jesus percebeu que os seus dias de confidências libérrimas seriam de novo concedidos à boémia, ao álcool e à vida desregrada.


46.

         Foi depois de mudar de roupa que Zulmira Pontes começou a ouvir um cântico entoado por muitas vozes. Garantiu a si mesma que não entendia o que estava a acontecer e foi-se prostrar à janela. Contudo, não chegou a ver nada que desse a entender que aquele som pudesse vir dali.
         Mas aquela luzinha vigilante no fundo das suas pupilas, cheias de uma curiosidade infantil, veio-lhe no momento exacto em que lhe pareceu ver, prostrada no meio da tempestade, a figura ambulante do doutor Ramiro de Jesus.
         Foi, com efeito, uma experiência incomodativa para ela, pois os seus olhos revelaram-se assustados, num impulso que a fez estremecer dos pés à cabeça. Depois, quando o coração voltou à normalidade, o peito dela subia e descia como uma concertina.
         E apesar de não querer acreditar directamente que a sua observação estava errada, a viúva Zulmira Pontes sentiu, por um lado, um breve alívio na alma, mas por outro, o coração apertava-se-lhe convulsivamente nesse sentimento castigador que é a saudade.
         E pensando que ia passar mais uma noite sozinha e longe das indecências autoritárias de um homem, Zulmira Pontes resolveu deitar-se ao som de uma balada popular de Art Sullivan e com o aconchego insonso de um romance de Corin Tellado.
         Entretanto, lá fora, a chuva era intensa e de uma autoridade implacável. E ao saber isso, todos os seus receios acalmaram-se.


47.

         Aquilo que ele acabara de pensar tinha, de facto, amolecidos os seus movimentos. É verdade que o comissário era um homem de gestos lentos e de palavras temperadas, mas por mais primitivas que fossem as suas reacções, ele sentia-se acabado.
         — Merda, Castro — ouviu-o o guarda dizer, — já deste conta da porra que me perguntas?
         — Já, comissário — respondeu ele, e arrependeu-se no mesmo instante.
         — Sai daqui, canalha! — Berrou o comissário com energia.
         O guarda Castro esperou um bocado e quando ia a dar vazão da sua inconcebível questão o comissário Lúcio Tavares ergueu-se e gritou-lhe com a boca completamente escancarada e as faces mais vermelhas que um pimento:
         — Sai daqui, caralho!
         Quando o guarda Castro saiu para a rua, uma tromba de água invadiu o chão da esquadra. Os olhos do comissário endureceram-lhe os contornos do rosto. A pele esticou-se-lhe no nariz e nas maçãs do rosto. Aos quarenta e dois anos o comissário Lúcio Tavares era um homem destroçado e amargamente acabado.


48.

         Aos cinquenta e sete anos o padre António era um homem de rosto enrugado e com uma experiência extraordinária da vida. Contudo, aquela sensação de impotência pela qual estava a passar era-lhe simultaneamente fatigante e enervante. Mas que fazer de concreto, a não ser angustiar-se e recordar, com pronunciada aflição, aquelas imagens que de tão avassaladoras pareciam correr ao contrário?
         Entretanto, de queixo encostado ao peito e a falar sozinho, o padre António deambulava em estado de apatia pelas ruas derrotadas de Ribeira de Mansos. E debaixo da tempestade que ameaçava mesmo transformar a aldeia num amontoado de destroços, o padre António ia assistindo, passivo, à imponderável força de Deus.
         Aqui e acolá as arvores enredavam-se umas nas outras, as pessoas caíam e rolavam pelos caminhos enlameados, as casas iam desaparecendo em sucessivas derrocadas que o vento, rapidamente, dava cabo.
         Isto é um aviso que devemos acatar ou rejeitar!, gritava o padre António com olhar desesperado para as pessoas que, surpreendidas, lhe pediam que rogasse a Deus, ou a quem quer que fosse que estava a provocar aquela matança, para parar de desordenar o mundo.
         Mas o padre António não fazia caso das palavras de socorro das pessoas. Ele olhava-as e com ar alarmado ia gritando prenúncios de raiva e mau agoiro. E então empurraram-no. O padre António rolou e voltou a rolar. Ao chegar ao fundo da rua, nem sequer despertara do seu desassossego. 


49.

         O comissário Lúcio Tavares acendeu uma cigarrilha cubana, fez subir os olhos para os seios aviltados da menina Clarisse e pediu-lhe explicações:
         — Andaste a foder com alguém enquanto estive fora?
         A menina Clarisse devolveu-lhe um olhar confuso e sentou-se nas pernas do comissário. Depois enterrou a cabeça no ombro dele e segredou-lhe, à procura do ouro dos seus olhos:
         — Sabes muito bem que estou proibida disso.
         O comissário assentiu com a cabeça mas fez-lhe ver que nem tudo o que se conta é verdade. E depois pôs as mãos nas pernas brancas dela. E embora não gostasse que ela lhe respondesse sempre com aquele à-vontade todo, como se surpreendesse sempre os seus pensamentos com respostas imediatas e frias, não pôs à prova a atenção da sua impaciência. Disse apenas, mudando de assunto:
         — E quanto ao padre António, não precisas de te preocupar mais.
          — Porquê?
         — Está louco.
         — Não estás a querer brincar comigo, pois não?
         — Parece que o diabo tomou conta da sua consciência.
         A menina Clarisse riu-se e depois cumprimentou um cliente de olhos cintilantes que a assediou demoradamente e então inquiriu, virando-se para o comissário:
         — Isso quer dizer que a minha casa já não corre qualquer perigo? É isso?
         — Assim parece.
         — Custa-me muito a acreditar nisso.
         — Não vejo porquê — resmungou o comissário.
         A menina Clarisse não retaliou. Os seus olhos ficaram a percorrer os recantos de toda a sala. Havia homens espalhados por todo o lado. Alguns conversavam entre si, outros beberricavam copos atrás de copos e ela pensou que as suas almas ir-se-iam rapidamente, tão enraivecidos ou tão tristes estavam.
         — E lá fora, como estão as coisas? — Quis ela saber.
         — Terríveis.
         — É verdade o que toda a gente diz por aí?
         — E o que é que toda a gente diz por aí?
         — Que a aldeia está toda a desmoronar-se.
         — É verdade — confirmou o comissário com desalento. — Parece que o céu quer engolir esta maldita terra. Mas o pior… — hesitou por momentos — é as casas antigas, desmoronam-se só com a força do vento.
         Nesse instante, a menina Clarisse fez sinal a Isabel que servisse um whisky ao comissário. Este, por sua vez, recebeu o olhar da criada com uma vontade firme e comprometedora. A menina Clarisse ouviu-o dizer:
         — Essa tua criada é deveras uma afirmação de mulher, acho que era a única a quem era capaz de dar um filho.
         Ela prontificou-se de imediato:
         — Deixa-te de comentários despropositados quanto a ela e diz-me, meu safado, queres continuar ai com esses lamentos de merda ou preferes ir lá para cima foder?
         O comissário fez questão de se rir, mas o seu esforço foi em vão, tão pesado era o seu olhar. A menina Clarisse encostou-se mais a ele e foi com alguma sofreguidão que o devorou com um beijo molhado. O comissário afastou-a, constrangido, e lamentou-se de seguida pela sua inoportuna falta de delicadeza com as desculpas que ela não precisou devidamente, limitando-se a franzir o sobrolho quando ele lhe falou algo sobre terem morto um gajo que se chamava Chico Morgas ou Morbas ou qualquer coisa do género e a raiva que tudo aquilo lhe provocava.
         A menina Clarisse foi, a pouco e pouco, substituindo todo o convívio social que tinha consagrado para ele e confessou aliás não estar para aturar aquelas merdas sobre mortos e o caralho que o fôda!
         O comissário Lúcio Tavares, contudo, não foi capaz de se refazer do aborrecimento que o consumia e ir atrás dela, como em tempos já fizera, em algumas tentativas disfarçadas de procurar esclarecer com ela os trechos mais complicados da vida.
         Em vez disso, deixou-se ficar quieto, emproado num verdadeiro prazer espiritual, mas na verdade eram o cansaço físico e as chatices do dia que ele almejava esconder. Deu algumas baforadas sucessivas na cigarrilha cubana enquanto os pensamentos determinavam leituras finais para aquele mistério que o embrenhava em silêncio.
         Quando acabou por afastar os pensamentos, sem ter alcançado conclusões previas de interesse, parecia mais cansado que nunca. E foi como que por magia que o sorriso esotérico de Isabel o acordou de uma necessidade urgente para com a vida.
         — A sua bebida, comissário — disse ela, num extenso sorriso de criança.
         Isabel, não obstante o carregadíssimo interesse do comissário por ela, não se deixou cair na sentença vulgarizada de tornar o sorriso ainda mais largo, como se assim quisesse dar a entender que queria ir para a cama com ele, e limitou-se a deixar estagnado no ar um convite aparentemente intimo:
         — Se desejar mais alguma coisa de mim, comissário, é só chamar-me.


50.

         O doutor Ramiro de Jesus acendeu um cigarro e aspirou-lhe o fumo com demora. Depois comentou:
         — Quem me dera ter uma mulher como tu, Soraya.
         A mulata cruzou os dedos, com desconfiança. Uma pequena veia batia- -lhe na testa. Ramiro de Jesus, entretanto, prosseguiu:
         — Longe de mim pensar que houvesse mulheres com poderes como os teus.
         Pensativa, a mulata acenou que sim com a cabeça.
         — Em todo o caso — continuou o doutor, — eu lutarei para guardar alguma coisa disto.
         Nesse momento a mulata sentara-se na cama. A franqueza daquele homem sossegara-a. Ela disse:
         — O senhor pode vir comigo sempre que assim o quiser.
         Ramiro de Jesus olhou-a, com um certo lampejo fraternal. Depois esmagou no cinzeiro o resto do cigarro. Um cântico entoado por muitas vozes chegou de muito longe como que empurrado pelo vento.
         A mulata ergueu os olhos, forçou-o docemente a pôr-se sobre si e uma grande excitação parecia transpirar-lhe do corpo sempre que ele escorregava para dentro dela.
         O que interessava naquele momento não era, com certeza, a responsabilidade conveniente de um homem comprometido, mas sim o gozo efervescente do sangue que todo aquele secretismo proporcionava. Era pelo menos, e assim ele pensava, o esclarecimento sexual — ainda que ironicamente conquistado — o que ele queria salvaguardar.
         Após uma vida inteira de indiscriminadas aventuras clandestinas que envolviam sempre mulheres, finalmente podia usufruir desse desejo severo e castigador que persegue todos os homens e que era, nada mais, nada menos, a consagração de um verdadeiro orgasmo sem subterfúgios.
         A mulata encostou-se à cama e suspirou. Os seus cabelos negros, molhados, caíam como farripas por cima dos olhos largos. O doutor passou-lhe a mão pelos seios, sorridente. Depois deu-lhe uma pancadinha na face húmida e espreitou-lhe aqueles olhos que reflectiam o vermelho do lume que soprava com sabedoria. Depois murmurou:
         — Que esta noite senti um cheiro a rosas, é bem verdade.
         A mulata sorriu. Tinha os dentes brancos e o olhar fixo num só ponto do horizonte.
         — Isso é mentira — disse ela sem levantar a cabeça, — não sentiu nada.
         Então Ramiro de Jesus olhou outra vez para o enorme corpo da mulher, como que medindo a sua quantidade de vida, e decidiu:
         — Por ti sou capaz de tudo.


51.

         A manhã está escura, ainda não clareia quando os homens saiem para a rua. A violenta bátega que afundara, por breves minutos, a terra num dilúvio, tinha parado. Contudo, havia um ressaibo em tudo aquilo que ainda se aguentava de pé.
         O comissário Lúcio Tavares vinha à frente acompanhado pelo acolito José que trazia uma cruz de pedras multicolores nas mãos. Atrás deles seguiam quatro homens que transportavam o caixão de Chico Morgas. Mais atrás seguiam outros quatro homens que transportavam o caixão de Belmiro Azedo das Flores. E atrás destes vinham mais uns quantos homens que transportavam outros tantos caixões.
         As mulheres, esclarecidas, apontavam dedos de definitiva humilhação para o caixão de Belmiro Azedo das Flores e escarneciam da cerimónia com excessiva liberdade. Entre as mulheres estava Genoveva das Dores que, vendo passar os mortos à sua frente, fechou os olhos e respirou uma golfada de ar fresco.
          Zulmira Pontes que estava com ela murmurou, um tanto ou quanto indignada, com aquele gesto da velha:
          — Não te compreendo, Genoveva, se odeias assim tanto o homem como podes agora rogar-te a tais sentimentos?
         A velha especificou:
         — Aos mortos deve-se dar o consolo do nosso silêncio, e esta é a forma que encontro para pôr paz nisto tudo.
         Abatida por aquela explicação tão eficaz, a viúva não fez qualquer contestação aos princípios incontornáveis da velha nem tão-pouco voltou a encarar aqueles olhos lívidos e sem fogo. Disse-lhe apenas:
         — Quem me dera ter a tua coragem.

        
        
        
        
        
52.

         Inclinando-se para a frente, o padre António viu a mulher com um amontoado de cabelos grisalhos no cimo da cabeça. Era uma velhinha magra que o encarava de forma atrevida e penetrante. Estava sentada à beira do precipício e tinha uma mão cheia de gladíolos no colo.
         O padre António aproximou-se dela e teve a impressão que a mulher ia falar quando a viu remexer as flores. Mas a mulher não chegou a dizer nada. Foi, contudo, o padre quem falou primeiro:
         — O que faz você aqui?
         A velhinha pôs a mão esquerda no ouvido, à escuta: ouvia-se o rumor do mar ao longe. Ela abriu então os lábios e murmurou:
         — Estas são as flores para o teu enterro, meu filho — e mostrou-as com grande entusiasmo.
         O padre António sobressaltou-se. Deu um guincho e os olhos reviraram de assombro.
         — Mas que raio dizes tu, velha tonta? — Perguntou ele.
         — O teu enterro, meu filho — repetiu ela, — tens de te preparar para o enterro.
         Então o padre António fugiu. E para qualquer lado que ele se virasse lá estava ela de braços estendidos oferecendo-lhe flores.
         Quando acordou, as gaivotas faziam voos a rasar-lhe a corola da cabeça e havia mesmo algumas que, por uma necessidade mais intrépida ainda, haviam já bicado um pedaço das suas sandálias. O padre olhou os dedos dos pés inteiros mas mesmo assim não foi capaz de suster um grito de horror. Depois ergueu-se e o bando de aves fugiu alvoroçado.
         Era já dia e aquele torvelinho de chuva e vento da noite anterior acabara por o arrancar de um estado de consciência lúcida para um estado de consciência servil, despótica e alucinada.
         E naquele instante o padre António começou a falar sozinho: 
         — Foi uma tempestade tão terrível que a chuva veio revolta e levou-me os pensamentos.
         A velha pôs as mãos à frente dele, aproximou a sua cara da dele e continuou a falar no mesmo tom monocórdico:
         — O teu enterro, meu filho, tens de te preparar.
         E o padre António de si para si:
         — Meu Deus, é mesmo verdade! A minha mãe diz que os que morrem sozinhos não vão para o céu.
         Com um impulso suave empurrou-a para o lado e depois esperou um longo instante. Quando por fim decidiu, o padre António encaminhou-se para a aldeia e não mais voltou a falar.
        
        
        
        
        


        



           
        
        

        

        

        

          
        

                  
                 
        
53.

         Quando chegaram ao cemitério o coveiro fez as honras da casa. Indicou ao comissário onde tinha aberto as covas e remeteu-se depois a um remanso de sossego.
         E enquanto os homens faziam descer os caixões através de cordas muito grossas o comissário Lúcio Tavares aproximou-se do doutor. Acendeu uma cigarrilha cubana e perguntou:
         — O que se passa, doutor? Está com uma cara esquisita desde esta manhã.
         O doutor pensou em ficar calado mas depois decidiu contar tudo:
         — A minha mulher deixou-me, comissário.
         Entre a multidão algumas mulheres entoavam cânticos que anunciavam a vinda iminente do Cristo Salvador.
         O comissário resolveu baixar o tom de voz quando se voltou a pronunciar:
         — Sempre gostava de saber o que, na verdade, a levou a prender-se tanto tempo a esta terra, doutor.
         — Deixe-se de graças, por favor — disse o doutor, amuado.
         — Era uma situação inevitável, doutor, tem de a compreender.
         — Aquela putazinha há-de voltar para mim, comissário, prometo-lhe.
         — Fale mais baixo — advertiu o outro, — estas mulheres dão tudo para aromatizarem as suas mortíferas coscuvilhices com as desgraças dos outros.






        
                 
                 
        
        
54.
        
         Quando o doutor Ramiro de Jesus voltou para casa, Carminda esperava-o com aquele mesmo aspecto franzino, aqueles mesmos olhinhos negros e a testa magra que ele sempre conhecera nela.
         — Que cara, homem, parece que viu um fantasma!                
         — E desde quando preocupas-te comigo?
         Carminda não respondeu. Os seus olhos tornaram-se mais inquietos ainda. E então ele teve a certeza. Contudo, ele fez um esforço para aumentar a sua expectativa, mas uma determinação irrepreensível confundia-lhe os pensamentos.
         — O que esperas de mim, Carminda? — Resolveu ele perguntar.
         — Nada em especial.
         O rosto do doutor adquiriu de súbito uma insólita vivacidade.
         — Mentira — disse ele.
         Ela riu e os seiosinhos estremeceram como um cacho de laranjas.
         — Essas coisas só acontecem por amor, Carminda.
         — Eu não lhe tenho amor, doutor.
         — E desde quando pensas isso?
         — Não seja ingénuo, homem de Deus! — Gracejou ela.
         — Se assim é, diz-me, de uma vez por todas, porque gostas de mim?
         Carminda contemplou-o com um sorriso travesso e até um pouco carinhoso.
         — A única coisa que sei com toda a segurança — disse-lhe — é que gosto de fazer amor consigo.
         — Confesso que não entendo os teus mistérios, pequena.
         Depois do mais erradíssimo passo de toda a sua vida que fora aceitar uma mulher de olhos apagados pelo aborrecimento da vida e que poderia mesmo ter dito que fora a mais bela do mundo, o doutor Ramiro de Jesus não queria, uma vez mais, cair em cálculos errados e cometer loucuras que acabassem em constrangimento e dor.
         Contudo, ele sentia-se vencido por uma tentação irresistível: Carminda era uma lufada de frescura que se imobilizava numa claridade diáfana e bravia, e ele sabia que no mundo estreito da cama não podia tomar qualquer decisão que a pudesse, porventura, eliminar.


55.

         Genoveva das Dores recebeu o comissário no pequeno jardim da casa com um sumo de laranjas frescas e uns biscoitos de manteiga que já cheiravam a bafio.
         Estava uma manhã fresca, de uma luz alourada e húmida. O ar cheirava ainda a mortos e havia qualquer coisa de transbordante que emanava das flores e da terra.
         O comissário fechou os olhos por uns instantes como se tivesse muito cansado e ao abri-los fixou a velha com um ar interrogativo.
         — Deseja mais alguma coisa, comissário?
         Lúcio Tavares fez um gesto de contrariedade e depois estendeu os braços dizendo:
         — Dona Genoveva, como deve calcular, a razão que me trás aqui não é nada agradável.
         — Como assim? Não me quer o senhor dizer que os homens da sua competência quando fazem visitas é só por causa de más noticias, pois não?
         — Não, não devia ser, dona Genoveva, mas desde que dei de caras com a morte de Belmiro Azedo das Flores que só me aparecem notícias desagradáveis pela frente.
         O comissário tirou um lenço do bolso das calças e, com muita delicadeza, limpou o suor que escorria da testa.
         — Bom — disse ele, — tenho razões perfeitamente sensatas — e aqui hesitou um pouco, mas depois continuou — para crer que a senhora seja responsável pela morte do senhor Belmiro Azedo das Flores.
         Genoveva das Dores não respondeu logo e fez um imperceptível sinal de impaciência com as mãos.
         — Acha mesmo isso, comissário?
         — Claro, senão não estava aqui — respondeu ele, enérgico.
         A velha fez de novo o mesmo sinal de impaciência e mostrou-lhe as mãos envelhecidas pelas circunstâncias inventivas e descuradas da vida:
         — A energia destas mãos, senhor comissário, depende das profundezas de uma cabeça e ressonante.
         O comissário, muito preocupado, olhou em volta com desconfiança, e sugeriu à mulher uma explicação mais adequada ao seu nível de escolaridade.
         — A verdade, senhor comissário — explicou a velha, — é que estas mãos nunca seriam capazes de matar um homem, muito menos um homem daquela envergadura.
         Lúcio Tavares desabotoou o colarinho da camisa e perguntou:
         — E uma espingarda, dona Genoveva?
         A velha fez um gesto com as mãos como se pedisse ao comissário que se despachasse com toda aquela maçada.
         — Uma espingarda, dona Genoveva — repetiu o comissário, — ou uma pistola era capaz de manejar, não era? É só preciso fazer pontaria e depois, muito simplesmente, com uma pequenina força do dedo indicador, puxar o gatilho e zás!, acabar com tudo de uma vez, não é, dona Genoveva?
         A velha olhava-o com ressentimento. Parecia um pouco desorientada. Perguntou:
         — Em que sentido?
         — Como em que sentido, dona Genoveva? Perguntei-lhe se era ou não capaz de manejar uma espingarda ou uma pistola.
         A velha esboçou um sorriso, mas talvez fosse um leve esgar.
         — Se tudo isso tivesse acontecido, senhor comissário, eu não era capaz de fazê-lo.
         — Bom — disse o comissário aproximando-se dela, — se não lhe bastam as razões práticas, vamos às razões teóricas.
         — E como é que o senhor chegou a tão absurdas conclusões, comissário?
         Aqui o comissário tornou a hesitar. Havia um fio gelado de suor que lhe escorria pelo pescoço abaixo. Contudo:
         — Vejamos se compreende uma coisa, dona Genoveva — articulou ele com dificuldade, — todos nós sabemos que o seu relacionamento com o falecido era, digamos, pouco amistoso senão mesmo impraticável.
         — Como impraticável, senhor comissário? Não existe uma só alma nesta maldita terra que possa afirmar que não odiava esse traste. Todos nós tínhamos um motivo para o matar, até você comissário.
         — É verdade, sim senhora — concordou ele, — mas digamos que a minha esquadra funciona por meandros pouco ortodoxos, ou seja — desculpou-se ele, — por meandros que as pessoas não conseguem entender.
         — Sim? E daí?
         — E daí, dona Genoveva — arriscou ele, — que chegou até mim uma informação bastante preocupante. Consta que você nutria um ódio muito especial por esse homem, um ódio de tal maneira tão grandioso que para esconder de uma vez por todas o seu segredo resolveu matá-lo e assim silenciar tudo.
         — Segredo? Mas que porra quer o senhor dizer com isso?
         — Não sei, dona Genoveva, sinceramente não sei, porque é isso que espero que a senhora mo diga: a verdade e nada mais que a verdade.
         A velha sentada à sua frente olhou em volta como se procurasse uma saída. A princípio não se deu conta que chorava, sentiu apenas as lágrimas que lhe molhavam a cara.


56.

         A menina Clarisse afastou os cabelos dos olhos e moveu a cabeça em direcção de Isabel. Os seus lábios abriram-se e depois contorceram-se num uivo imperceptível que ficou a agonizar-lhe no fundo da garganta. Depois cruzou as pernas e sorveu um pouco de martini. Os dedos ficaram a passear sobre o contorno do joelho.
         — Espero que tenhas ficado pelo menos satisfeita — disse ela, por fim.
         — Mas o quê que se passa contigo, Clarisse?
         A menina Clarisse abanou a cabeça e abriu os olhos como se alguém a tivesse seriamente magoado.
         — Tens cá uma lata!
         Isabel moveu-se no cadeirão, inquieta.
         — Não tenho culpa de nada.
         — Tu nunca tens culpa de nada, Isabel.
         — Mas que porra vem a ser isto?
         Isabel levantou-se num gesto rápido e a menina Clarisse viu-a como a vira sempre: os olhos estranhamente convidativos, os seios belicosamente perigosos, o ventre liso de reflexos gordurosos e as ancas violentas provocando-a.
         — Não tinhas o direito de ir para a cama com ele, Isabel.
         Mas a menina Clarisse não a via somente assim, sem qualquer espécie de pragmatismo ou sentimentalismo, a menina Clarisse via-a também como uma mulher sem convenções, sem secretismos, despida de inglórias e vergonhas, de espírito humano, de palavras comunicativas, espirituosas, amante.
         — Não tenho culpa que o maldito do homem quisesse ir para a cama comigo.
         — Podias ter tentado, raios!
         Isabel empertigou-se e os seios cresceram para fora da blusa, os lábios tingiram de vermelho o cigarro.
         — Sempre te imaginei como uma mulher que só podia amar outra mulher.
         Isabel não disse nada. Tinha os olhos parados num ponto invisível. Só os seios pareciam vivos ao longo do intervalo que os separava.
         — Eu não queria magoar-te, Clarisse.
         — Não faz mal — mentiu a outra, — eu é que sou uma parva.
         — Não digas tontices.
         A menina Clarisse baixou os olhos para o tapete e perdeu-se nas linhas homogéneas que formavam quadrados brancos e azuis. Acabou o martini num só trago, pousou o copo no chão, afastou as pernas e deixou cair as mãos no meio delas. Uma espécie de abandono consumia-a.


57.

         — É ele!
         Gritaram algumas pessoas quando o viram chegar. O padre António trazia as vestes rasgadas e uma expressão sedenta no rosto.
         — Matem-no!
         As pessoas começaram a apanhar pedras do chão sem se importarem se era um homem que ali estava ou a personificação do demónio.
         Assassino!
         E enquanto as pessoas gritavam-lhe com voz magoada palavras de ódio e os cães corriam alvoraçados de um lado para o outro e as crianças ensaiavam choros inquebráveis nos braços das mães, o padre António, assustado, sentindo cada pedra no corpo como uma lâmina aguda, rogava aos céus a salvação, como se Deus — ainda que possível — o escutasse e o pudesse absolver.


58.

         O comissário Lúcio Tavares cruzou os braços como se esperasse uma resposta. Acendeu uma cigarrilha cubana e tentou adivinhar os pensamentos da velha. Disse:
         — Então, dona Genoveva, diga lá em que está a pensar.
         Mas já não era o comissário Lúcio Tavares quem estava à sua frente a incriminá-la com observações cretinas sobre assassinos e espingardas e pistolas e a porra que o pariu, mas sim Belmiro Azedo das Flores com o cinto das calças desapertado e a segurar-lhe nos pulsos e a garantir-lhe:
         — Hás-de ser minha, Genoveva.
         E o comissário intrigado a registar o movimento das pálpebras da velha, a desconfiar do silêncio e da tremura das mãos, a perguntar:
         — Não quer falar, dona Genoveva?
         E Belmiro Azedo das Flores a libertar-se das calças, a libertá-la do avental de plástico, a chamá-la pelo nome:
         — Genoveva.                       
         E o comissário com uma ponta de sarcasmo no olhar a insistir e a empurrá-la contra a parede com perguntas incriminatórias:
         — O que é que ele lhe fez, dona Genoveva, para acabar com a vida do homem?
         E Belmiro Azedo das Flores a sufocá-la com a liquescência da ponta da língua, a tocá-la nos seios que emergiam como gelatina no decote do vestido:               — Hás-de ser minha, Genoveva.
         E o comissário com um ar cada vez mais sério e com o colarinho da camisa cada vez mais encharcado em suor a empurrá-la contra a parede, a repetir:
         — O que é que ele lhe fez, dona Genoveva, para acabar com a vida do homem?
         E ela de olhos encadeados e com a boca presa na boca dele, a procurar sossego, a procurar que ele se despachasse:
         — Faz o que tens de fazer.
         E Belmiro Azedo das Flores a fazer o que tinha de fazer, a derrubá-la sobre a mesa da cozinha, a procurar-lhe o sexo escondido, a segredar-lhe ânsias ao ouvido:
         — Hás-de ser minha, Genoveva.
         E ela sentindo-se suja, com os lábios esborratados, a língua pegajosa, o ventre molhado, as pernas doridas, e o comissário Lúcio Tavares lançando anéis de fumo para o ar, o calor invadindo as frechas das portas e das janelas, o sumo de laranjas frescas já morno, os biscoitos cada vez mais escuros e mais duros e Belmiro Azedo das Flores esvaindo-se em sémen para cima das coxas da mulher.


59.

         O doutor Ramiro de Jesus acendeu um cigarro e depois, uma rápida alegria, assomou, exaltada, à sua boca.
         — Gostas mesmo de fazer amor comigo, pequena?
         Carminda encarou-o com severidade. Estavam sentados no sofá da sala e uma música muito longínqua sussurrava-lhes ao ouvido.
         — Gosto que me olhem nos olhos quando me fodem — disse ela.
         Ele sorriu e confessou num desabafo:
         — És a pior coisa que me podia ter acontecido.
         Ela colocou as mãos à volta das pernas dele e deixou-se escorregar para o chão. Os olhos brilhavam veemente na imponência do seu corpo.
         — Olha-me nos olhos — pediu ela.
         Ele olhou-a e compôs-lhe o desalinho dos cabelos com dedos tão seguros que Carminda fingiu deixar-se adormecer num movimento servil.
         — Agora beija-me como se esta fosse a ultima vez que me visses — pediu depois.
         E ele pegou nela como se aquele corpozinho fizesse parte do seu e fosse impossível deixá-lo ao acaso. Deitou-a na cama onde tantas vezes se apercebera que não amava a mulher que dormia a seu lado e começou a despi-la levemente com a ponta dos dedos.
         A música chegava agora com menos intensidade ainda, apenas um murmurinho ecoando pelas paredes e o chão, uma chuvinha de violinos, trompetes, clarinetes e tambores a subir e a descerem de paisagem em paisagem.
         E então o doutor Ramiro de Jesus enfrentou-a com sobriedade. O cigarro queimando a urgência de um grito:
         — Não me deixes nunca, Carminda.
         Mas já ela sentia correr dentro de si os espasmos de uma outra realidade quando ele murmurou:
         — Não me deixes nunca, Carminda.
         Mas já ela tinha os olhos cravados nos olhos dele quando ouviu:
         — Não me deixes nunca, Carminda.
         Mas já ela sentia o corpo dele contra o seu, empurrando-a contra a cama, empurrando-a com as mãos, as ancas, o peito, o ventre, o pénis, quando ele disse:
         — Não me deixes nunca, Carminda.


60.

         E depois de ouvir tudo com toda a atenção, sem ligar nenhuma ao sumo de laranjas frescas que morria na mesinha e sem ligar nenhuma aos biscoitos de manteiga que escureciam de bolor no colo da velha, o comissário Lúcio Tavares recostou-se na cadeira e trincou a cigarrilha cubana sem, no entanto, saber o que dizer.
         E embora aquilo que ele devesse dizer-lhe não fosse nada agradável porque não se pode dispor da vida dos outros assim sem mais nem menos, perguntou apenas:
         — E Chico Morgas? Quem o matou?
         — Disso não sei nada, comissário — respondeu a velha.
         — Mas tem de haver um motivo, não acha, dona Genoveva?
         — Não sei comissário, eu apenas falei com ele porque tinha conhecimentos com gente de má fé.
         — Pois — suspirou o comissário, — bem me parecia que ele andava metido em merdas.
         — E agora, comissário, o que vai acontecer?
         O comissário Lúcio Tavares ergueu-se, sacudiu o resto das migalhas esquecidas sobre as calças e esboçou aquilo que parecia ser, não um sorriso — é verdade — mas também não parecia ser nenhuma expressão depreciativa ou algum sinal de condenação, mas sim um olhar de condescendência, um desvelo que o inibia e o proibia de fazer fosse o que fosse para criar a desarmonia. Disse apenas:
         — O que eu devia fazer agora, dona Genoveva, era condená-la por assassínio premeditado, mas não o vou fazer.
         A velha baixou a cabeça e perguntou:
         — E porque não o faz, comissário?
         Lúcio Tavares apagou a cigarrilha cubana com a sola do sapato e disse--lhe como se aconselhasse uma filha ou uma irmã mais nova:
         — Não o faço porque você iria sentir-se mais culpada ainda, iria passar a viver um isolamento maior e talvez fosse condenada à morte. E para que é que eu quero mais uma morte, dona Genoveva?
         E nesse momento bateram à porta. A velha sobressaltou-se e sentiu as pernas tremerem. O comissário abriu mais os olhos e perguntou:
         — Quem é?
         E da rua chegou uma voz estrangulada pela aflição:
         — Comissário? É você?
         — O que se passa, Castro?
         — Tem de vir depressa, comissário, estão a matar o padre António.


61.

         E quando o comissário Lúcio Tavares chegou à praça, onde a igreja cambaleava em quietude na modorra da tarde e os pombos rasgavam o céu num alarido de asas, o corpo do padre António começava a ser erguido do chão e a ficar suspenso nas arvores da aldeia.
         E quando fizeram descer o corpo a pedido misericordioso do comissário, o padre António espumava dos cantos da boca e não dizia coisa com coisa. Foi o comissário quem gritou aborrecido com tudo aquilo:      
         — Mas que raio vem a ser isto?
         E nisto os pombos desapareciam do céu de Ribeira de Mansos, Genoveva das Dores guardava os biscoitos de manteiga numa lata com ursinhos na tampa, a viúva Zulmira Pontes olhava-se no espelho com ânsias de se matar, e o comissário Lúcio Tavares, de rosto transtornado, a gritar:
         — Mas que raio vem a ser isto?
         E a menina Clarisse despia as calças, despia a camisola, despia as calcinhas, despia o soutien, enfiava-se na cama, chamava por Isabel, e o comissário Lúcio Tavares, de rosto transtornado, a gritar:
         — Mas que raio vem a ser isto?
         E nisto o padre António desfalecia nos braços do comissário como um inválido de guerra a quem tivessem quebrado as pernas e os braços e a cabeça, e o comissário Lúcio Tavares, de rosto transtornado, a gritar:
         — Mas que raio vem a ser isto?
         E a menina Clarisse abria as pernas, abria os lábios, deixava escorregar as mãos pelo lençol, puxava para si o corpo de Isabel, e o comissário Lúcio Tavares a agarrar o corpo do padre, a sustê-lo no ar, a impedir que amolecesse numa queda surda, a gritar:
         — O responsável por isto vai ter de haver-se comigo!
         E nisto Isabel a introduzir os dedos na vagina da menina Clarisse, e a menina Clarisse a abrir mais as pernas, a abrir mais os lábios, a soluçar:
         — Isso!
         E o comissário Lúcio Tavares a recriminar toda a gente, a chamá-los:
         — Assassinos!
         A chamá-los:
         — Loucos!
         E a menina Clarisse a abrir e a fechar as pernas, a estalar a língua, a puxar e a repuxar os lençóis, a contorcer-se em números de circo, a soluçar, à medida que os dedos de Isabel a penetravam, ora dentro ora fora, ora dentro ora fora, à medida que a língua de Isabel lhe subia e descia pelos seios, lhe contornava o vale do umbigo e voltava a subir e a descer pelos seios enrijecidos:
         — Isso!
         E nisto o comissário Lúcio Tavares a discutir com a população, a segurar o padre que teimava em cair, a ampará-lo com os joelhos, o peito, as ancas, e a gritar:
         — Vocês não tinham o direito de fazer isto!
         E a velha a deitar no caixote do lixo as cascas das laranjas frescas, a lavar o jarro, a limpar as mãos à toalha da loiça, e a menina Clarisse a morder a língua, a guinar as ancas para a esquerda e para a direita, a esticar e a encolher as pernas, a soluçar cada vez mais alto:
         — Isso!
         E o comissário Lúcio Tavares a cair ao chão e a levar consigo o peso morto do padre, a cair ao chão e a gritar:
         — Porra!
         A levantar-se de seguida, a puxar o padre pelos ombros, a segurá-lo pelos braços, e a menina Clarisse, longe dos homens de Ribeira de Mansos, longe das mulheres de Ribeira de Mansos, dos pombos, das casas, a subir às nuvens, a agarrar-se às abas do céu, puxando-o para si, sentindo-lhe o bafo pelas pernas, o ventre, o umbigo, os seios, o pescoço, a boca, a soluçar cada vez mais alto:
         — Isso!
         E nisto o padre António a não dizer coisa com coisa, com uma espuma gordurosa nos cantos da boca, os olhos vítreos como se uma cegueira ininterrupta tivesse-lhe tomado conta dos gestos, as mãos enclavinhadas, o corpo desfeito em baba, e a menina Clarisse, de pernas arqueadas, mais abertas que o Arco do Carvalhão, mais abertas que o túnel do Campo Grande, a língua entre a curva dos lábios, sibilina, as mãos remoendo os cabelos em soluços violentos, o ventre a cuspir gotículas de agua, o sexo a cuspir gotículas de esperma, e o padre António, aos tropeções, a nãos dizer coisa com coisa, e a menina Clarisse a gritar:
         — Isso!
        


62.

         Muito depois de levarem o padre António para o hospício em Lisboa, os habitantes de Ribeira de Mansos viviam ainda sobre a pressão daqueles últimos dias. As pessoas entreolhavam-se com o receio de que a terra começasse a tremer apenas com o movimento dos olhos, o gesto das mãos, as palavras que diziam.
         Quando o comissário Lúcio Tavares mandou chamar o doutor Ramiro de Jesus e acendia uma cigarrilha cubana e recostava os ombros na cadeira rotativa de carvalho, a tarde principiava lá fora a tornar-se mais escura e mais fria, as mulheres preparavam a janta e os homens começavam a regressar da lavoura.
         — É preciso fazer qualquer coisa, doutor! — Disse o comissário indicando-lhe uma cadeira.
         — Não há nada a fazer, comissário.
         — Não são essas as informações que quero ouvir, raios!
         — Mas não se pode fazer mais nada.  
         — É preciso, doutor, a aldeia não pode continuar a viver assim. As pessoas vivem atemorizadas, têm receio de falar umas com as outras, já não são capazes de virar uma esquina sem verem bem onde estão a pôr os pés, como se fosse possível que as catástrofes viessem assim e sem mais nem menos.
         Aqui o comissário calou-se. Mas ao dar conta da sua hesitação logo continuou numa exposição aflita e brusca:
         — Os homens deixaram de ir à taberna, as mulheres já não andam por aí a falar mal umas das outras e todos desconfiam de todos. Isto tem de mudar, caralho!
         O comissário bateu com o punho na secretária e olhou o outro como se esperasse deste uma solução ao problema:
         — Isto tem de mudar, caralho!
         Como se esperasse que só da boca dele pudesse haver uma palavra de esperança, uma palavra que superasse tudo.
         — Eu não peço nada do outro mundo, doutor — disse o comissário, — só quero que esta terra volte a ser como era dantes. Que mal há nisso?
         O doutor ajeitou o colarinho da camisa que cheirava a goma e olhou para o guarda Castro que sacudia o pó da lapela do casaco e olhou a prateleira atrás do comissário com os cavalinhos de madeira a segurar os livros, os bibelots de barro empoleirados uns nos outros em busca de espaço e olhou a mancha alva e negra que era uma paisagem impressionista de um pintor que ninguém sabia o nome e olhou o candeeiro do tecto que tornava a sala num bloco amarelo de enfermaria e olhou o crucifixo esparramado na parede suspenso numa cavilha ferrugenta e olhou as portas das celas e depois as celas vazias e depois a expressão ensimesmada do comissário, os lábios que tremiam de nervosismo, as mãos espalhadas sobre o tampo da secretária, a cigarrilha cubana a formar um caminho de cinza, e então o doutor Ramiro de Jesus disse que não queria assustá-lo mas as coisas tinham tomado um curso repentino e misterioso e que estava de partida.
         — O quê? Agora? — Balbuciou o comissário. — Como pôde tomar essa decisão numa altura destas, doutor? E o novo padre? Ele está aí não tarda nada.
         — Ouça uma coisa, comissário.
         — Não fale nada, doutor — protestou o outro,        — já sei o que vai dizer-   -me.
         E Ramiro de Jesus olhou o cinzeiro que não era mais que um ancoradouro de cigarrilhas avariadas e olhou a fotografia do comissário quando ainda jovem e andava a matar pretos no Ultramar e olhou a janela que dava para a rua que era um quadrado muito pequeno a dois metros acima do chão e que deixava uma réstia de luz de quando em quando e donde se podia ver os pombos enroscados nas copas das arvores e então pensou:
         — Este gajo quer ressuscitar os mortos.
         E o comissário a bater com o punho no tampo da secretária:
         — Isto tem de mudar, caralho!
         E o doutor a pensar:
         — Aos mortos não se pode pedir nada, velho tonto.
         E o comissário a querer acreditar que não tinha percebido bem, a querer acreditar que o outro não tinha dito o que tinha dito:
         — O quê? Agora?
         Mas o doutor fora peremptório:
         — A vida aqui deixou de me interessar, comissário.
         — Está mesmo decidido a isso?
         — É melhor assim.
         E antes de sair e de voltar costas aos cavalinhos de madeira, aos bibelots de barro, à mancha alva e negra, ao candeeiro do tecto, ao crucifixo esparramado na parede, às portas das celas e depois às celas vazias, ao cinzeiro que não era mais que um ancoradouro de cigarrilhas avariadas, aos pombos enroscados nas copas das arvores, e mesmo antes de voltar costas ao comissário, perguntou:
         — Só mais uma coisa, comissário. Como ficou isso do assassínio do Belmiro Azedo das Flores?
         O comissário Lúcio Tavares entendeu a armadilha que o outro lhe preparara mas, mesmo assim, não teve receio nenhum em responder:
         — Não há nada a fazer.


63.

         Nessa noite o doutor Ramiro de Jesus dormiu mal. Foi constantemente assolado pela imagem do pai que o espreitava das almofadas com um nariz pontiagudo e recriminatório, que o espreitava dos lençóis e chamava-lhe com todas as letras:
         — Cobarde!
         Que o espreitava das gavetas da cómoda, dos abatjours dos candeeiros, sempre de nariz apontado, à escuta de um desabafo do filho, à escuta de um sentimento de remorso, de um qualquer estremecimento que desse a entender que as ideias baralhavam-lhe o sono.
         De manhã, quando acordou, tinha os olhos inchados e uma espécie de cegueira crispando-lhe a vista. Ergueu-se da cama com uma dificuldade de naufrago e procurou aos apalpões algo que identificasse um cheiro de mulher.
         — Foda-se — disse.




EPÍLOGO
                 




         Ela tinha cinquenta e oito anos quando aquilo aconteceu, e a cena estava mais nítida na sua memoria que as coisas que tinham sucedido ontem.
         Genoveva das Dores tinha a espingarda à altura do ombro e fazia pontaria à cabeça de Belmiro Azedo das Flores. Atrás dela as ondas explodiam num fogo de artifício ensurdecedor e o céu era uma mescla de azuis e brancos.
         — Quanto tempo, homem? És capaz de me dizer?
         — Não tinha pedido para que viesses sozinha? E para que raio é a arma?
         Genoveva das Dores olhou para a viúva e depois para o homem. Este trazia um fato de linho cinzento e uns sapatos de verniz. Os lábios pareciam mais vivos e as sobrancelhas levemente disfarçadas. Tinha a pele do rosto bem tratada e a barba despontava uniformemente em toda a largura da cara. A velha achou-o impressionante.
         — Eu devia era dar-te cabo do canastro e era já, velho d’um raio — disse ela.
         Belmiro Azedo das Flores riu e depois enfrentou-a com severidade:
         — Tu não és capaz de matar ninguém, mulher. Já reparaste bem para a tua figura? Pareces um espantalho com uma maçaroca nas mãos.
         A velha empertigou-se. Apertou mais a espingarda ao ombro e acariciou o gatilho com a ponta do dedo. Moveu depois o cano da espingarda da cabeça do homem para o peito e depois até ao sexo e voltou a subir até à cabeça. Disse:
         — Não sei porque voltaste, mas se quiseres alguma coisa de mim vais ter de me matar primeiro.
         Belmiro Azedo das Flores voltou a rir. Fez um gesto com a cabeça como se quisesse dar a entender que não era isso que queria e acrescentou:
         — Ouve, Genoveva, tu não tens onde cair morta, por isso deixa-te de merdas.
         A velha corrigiu a posição da espingarda e depois perguntou:
         — O que é que tu queres?
         — Não o deixes vencer-te, Genoveva — as palavras da viúva Zulmira Pontes soaram estridentes e tal como as ondas que embatiam nas rochas quebraram-se em estilhaços de luz e cor.
         O homem mediu-a com uma certa firmeza no olhar como se fosse a primeira vez que a via. Percorreu-a com ferocidade e quando acabou os seus olhos estavam decididos a assaltarem os dela.
         — Porque não dizes logo o que queres? — Interrompeu a velha.
         Belmiro Azedo das Flores voltou-se. Tinha o corpo tenso. Os braços estendidos em direcção ao chão como duas asas quebradas. Foi peremptório:
         — Quero a minha filha.
         A velha tornou a corrigir o peso da espingarda no ombro. E a viúva de novo a intrometer-se no meio deles:
         — Não lhe dês ouvidos, Genoveva.
         E Belmiro Azedo das Flores para a viúva:
         — Ah, grande vaca que te parto os cornos!
         E a velha para Belmiro Azedo das Flores:
         — Se tocas num só cabelo dela rebento-te com os miolos.
         Belmiro Azedo das Flores levou as mãos aos bolsos das calças e avançou um passo. A velha puxou a culatra e avisou:
         — Se dás mais algum passo, o mínimo que seja, rebento-te com os miolos.
         E a viúva Zulmira Pontes como que pressentindo uma imagem monstruosa de sangue, como que se apercebendo dos mais elementares ingredientes de fúria nos olhos do homem, a gritar:
         — Cuidado, Genoveva! Ele está armado!
         E Genoveva das Dores, tomada de um estremecimento que a consumisse e abrisse em si uma crise imparável, não soube até que ponto aquele excesso de estranheza teve o valor de uma revelação. Assim, quando puxou o gatilho, uma espécie de destino a condenava e compreendeu então que aquela solidão moral que tantas vezes a consumira não era mais que o pormenor de arquitectura que lhe fosse intrometido na pele e depois na carne e depois nas veias e depois no sangue.
         Não tardou muito que se arrependesse, porque o que Belmiro Azedo das Flores tinha nas mãos não era uma arma, mas sim várias fotografias de Carminda de boca aberta e de olhos gelatinosos perscrutando o escuro da noite como fazem os ladrões.


Laranjeiro 1999 - 2000